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A “vinha do Senhor” está aberta a todos os que estiverem dispostos a servir

Gn 37, 3-4. 12-13a. 17b-28; Mt 21, 33-43. 45-46

A observar pelos destinatários da parábola de Jesus ─ príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo ─, é clara a intenção de Jesus e o objetivo desta parábola, em relação à defesa do povo a qualquer fechamento ou opressão. Não faz sentido, para o povo que foi libertado do Egito e fez a sua “páscoa” contínua como caminho pela história, ficar presa a algum tipo de opressão por parte de qualquer tipo de sistema sedentário.

O novo povo de Deus ─ que é a Igreja ─ também pode correr o risco que está na base da advertência de Jesus àqueles chefes religiosos. Por isso, é chamada a caminhar em renovação contínua, para se fiel à identidade e missão que Cristo lhe confiou.

Uma das “páscoas” que hoje somos convidados a realizar é: De uma separação ou desordenada relação entre sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial à comunhão no serviço, através do chamamento e preparação de novas vocações e ministérios. Onde houver um abismo entre pessoas da mesma comunidade (paróquia ou diocese, ou país) é porque há a necessidade de atender com urgência a esta parábola. É por isso que o Papa Francisco tem afirmado com veemência que o clericalismo é uma perversão da Igreja. Onde ele existe, mais ou menos explicitamente, há uns a aproveitar-se de outros para sobreviver. E a Igreja não tem como missão ajudar-nos a sobreviver, mas a viver. E a vida é dom para todos e requer o serviço de todos, mediante a diversidade de dons e talentos que o Espírito concede a todos os homens e mulheres de boa vontade. É óbvio que a tendência o clericalismo não é meramente um problema do clero; pode ser uma tendência de alguns fiéis batizados que não estão tão bem (in)formados sobre a relação de reciprocidade entre todas as vocações e ministérios, com direitos e deveres previstos no Código de Direito Canónico e no Magistério da Igreja. A fonte destes, que é a Sagrada Escritura, é clara, mas está muito distante e precisa de ser assimilada e discernida nas circunstâncias atuais. Os cristãos que frequentam ou “habitam” as assembleias litúrgicas têm o dever de abrir as comunidades ao bem e fechá-las ao mal. É este o sentido da “incardinação” entendida na ampla dimensão da missionaridade da Igreja, que é a Evangelização. Neste sentido, ouso defender que não são só os clérigos que precisam de estar “incardinados”; os leigos comprometidos através dos movimentos, associações e obras, assim como os religiosos e religiosas, deveriam, também, sentir no coração uma “incardinação” a um projeto comum, fugindo todos à tendência de “dividir ou confundir para reinar”. É esta, para mim, a maior perversão da missão, como advertiu Jesus, numa certa ocasião, à multidão: “Quem não está comigo está contra mim, e quem não recolhe comigo dispersa” (Lc 11,23).

A nossa relação com Deus e com os irmãos é derradeiramente proporcional, no coração como nas imediações das duas faces do portão de casa

Jr 17, 5-10; Lc 16, 19-31

Diz Franz Jalics:

A relação com os outros determina a nossa relação com Deus e vice-versa. A relação com Deus e a relação com as outras pessoas discorrem sempre em paralelo e que uma para a outra podem ser banco de prova ou controlo de autenticidade. Porque é o mesmo coração humano que entra em contacto com Deus e com os outros. Por esta razão, quem alcança uma atitude contemplativa no seu trato com Deus será também compreensivo com as pessoas com quem se relaciona e se abrirá a elas com confiança e paz. Claro que também é certo o contrário: quem não é capaz de entender os seus semelhantes e de comunicar-se com eles, tão pouco chegará longe na sua relação com Deus.

Traduzido de Escuchar para ser: dimensión contemplativa de las relaciones interpersonales. (Salamanca: Ediciones Sígueme, 2022), 19.

Este pedaço de texto não é meramente uma teoria, mas um testemunho que provém de tentativas de amar os outros como Deus os ama a partir de nós mesmos. Contrasta com a falta de reciprocidade entre as personagens da parábola que Jesus conta aos fariseus. Jesus não lhes nega a relação com o Pai, mas avisa-os de que entrar no Reino ou não dependerá deles, na forma como doarem o que receberam.

Comparando esta lição de Jesus aos fariseus com a experiência que o Mestre fez com os discípulos no Monte Tabor, concluo que estes tiveram como “bónus” o sinal daquela Luz que irradiava de Jesus por antecipação da glória que dá sentido a uma forma de atuar inspirada n’Aquele que caminha em doação até Jerusalém. No entanto, não serve de desculpa para não fazer o bem, uma vez que já Moisés e os Profetas faziam transparecer a justiça de Deus que culminou em Jesus.

O “magis” pascal que dá sentido ao caminho quaresmal é a síntese entre o verdadeiro saber, o coerente fazer e o honesto sentir

Jr 18, 18-20; Mt 20, 17-28

Vamos subir a Jerusalém e o Filho do homem vai ser entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que O condenarão à morte e O entregarão aos gentios, para ser por eles escarnecido, açoitado e crucificado. Mas*, ao terceiro dia, Ele ressuscitará.

Ao fazer a lectio divina deste texto, o meu olhar decalcou em primeiro lugar a relação aparentemente desproporcionada entre o empreendedorismo litúrgico dedicado ao caminho quaresmal e ao fluir quase líquido do tempo pascal. Mas é só um pensar aparente, pois, na verdade, a Páscoa, na pastoral da Igreja, apresenta-nos, «em saída», na Liturgia da Vida, várias propostas de “ressurreição” pessoal e comunitária, como são os exemplos das Semanas das Vocações e da Vida, entre muitos outros.

Nestes dois versículos está o sumário do anúncio derradeiro da Paixão-Morte-Ressurreição que constitui o kérigma pascal. Síntese vocacional de todos os que se colocam a seguir Cristo de forma radical, até às últimas consequências.

Porém, se o evangelista nos relata o querer desviado dos discípulos, incluindo a mãe dos filhos de Zebedeu, é porque existe a probabilidade de aquela radicalidade não ser real, mas aparente.

É neste contexto que Alessandro Manenti (Vocazione, Psicologia e Grazia. Prospettive di integrazione, EDB, Bologna 20066, 79-84) ousa apresentar os meios da formação, diferenciando-os como primários e assessórios, no seguimento de Jesus Cristo:

MEIOS PRIMÁRIOS ─ Meios que por natureza ajudam diretamente a alcançar o objetivo da formação, interiorizando os valores da sequela de Cristo e da união com Deus, através de duas forças: adquirir os ideais livres e objetivos que sejam fonte de confronto contínuo (maturidade vocacional); e conhecer-se nas próprias resistências a viver os ideais (maturidade psicológica). Ei-los:

1) Discipulado

2) Ideais claros

3) Radicalidade, mas em factos

4) Ser autênticos

MEIOS ACESSÓRIOS ─ que podem beneficiar colateralmente os meios primários:

1) Experiências, mas com cuidado quanto ao horizonte/meta

2) Dinâmicas de grupo, se bem programadas e avaliadas

3) Discernimento, sobretudo pessoal


Como reflete Tomás Halik, na sua Introdução espiritual à Assembleia sinodal da continente europeu, em Praga,

Só Jesus pode dizer: Eu sou a verdade. E ao mesmo tempo diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Uma verdade que não fosse viva e não fosse caminho seria como uma ideologia, uma mera teoria. A ortodoxia deve ser combinada com a ortopraxis, a ação correta. E não devemos esquecer a terceira e mais profunda dimensão, a de viver na verdade. Esta é a ortopatia, paixão reta, desejo, experiência interior ─ espiritualidade. Sobretudo, é através da espiritualidade ─ a experiência dos crentes individuais e do conjunto da Igreja ─ que o Espírito gradualmente nos introduz na totalidade da verdade. As três, ortodoxia, ortopraxis e ortopatia, necessitam-se reciprocamente. Ainda que a ortodoxia (ideias corretas) possa ser intelectualmente atrativa, sem a ortopraxis (ação correta) é ineficaz e sem a ortopatia (sentimento correto), é fria, imatura e superficial.

Introdução espiritual à Assembleia

A averiguação da sincronia entre ortodoxia, ortopráxis e ortopatia pode ser uma boa forma de os educadores na fé, os formadores na vocação e os agentes pastorais em geral verificarem se os meios acessórios com os quais gastamos a maior parte do nosso tempo pedagógico chegam a pôr em ação os meios primários do seguimento de Jesus, como se de uma tabela se tratasse:

OrtopatiaOrtopráxisOrtodoxia
Discipulado???
Ideais claros???
Radicalidade em factos???
Autenticidade???

* No Latim, “mas” diz-se “magis” (cf. Infopédia). Por vezes, num caminho libertador, podemos correr o risco de nos contentar-nos com o “menos”, desviando-nos do propósito inicial. Foi o que aconteceu com o povo hebreu no deserto, querendo desistir por causa da fome das coisas terrenas, esquecendo-se da terra prometida (onde corria leite e mel) e querendo voltar para o Egito, comendo a carne e o pão dos escravos: Toda a comunidade dos filhos de Israel começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão. Disseram-lhes os filhos de Israel: «Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egipto, quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne e comíamos pão até nos saciarmos. Trouxestes-nos a este deserto, para deixar morrer à fome toda esta multidão»(Êxodo 16, 1-18. 35).

No caminho quaresmal, devemos atende sempre ao mais que é a promessa da Ressurreição, não nos deixando escandalizar pelo sacrifício (sacrum facere, fazer sacro que é acabar com o mal) a que nos implica o caminho.

Jesus, a multidão, os apóstolos… e o antagonista

Is 1, 10. 16-20; Mt 23, 1-12

Dada a importância dada à prática da justiça divina quer nas leituras do Antigo Testamento, quer nas do Novo, depreendemos que a dimensão da diaconia ou do serviço é tremendamente importante na Quaresma em direção à Pascoa. Dizer e não fazer não faz parte da atitude do cristão, muito menos fazer para dar nas vistas. Jesus preocupa-se em fazer o bem a todos e, depois de alimentar e curar os corpos, ensina para alimentar as almas. Foi sempre assim a atitude dos missionários ad gentes. Como não podia ser importante também ad intra?

O texto evangélico de hoje convida-nos a regressarmos ao Documento Preparatório do Sínodo “Por uma Igreja Sinodal ─ Comunhão, Participação, Missão”, mais concretamente do n. 17 ao n. 21, onde podemos contemplar a relação entre os personagens da vida cristã em dialética.

17. Na sua estrutura fundamental, uma cena original aparece como a constante do modo como Jesus se revela ao longo de todo o Evangelho, anunciando o advento do Reino de Deus. Os atores em jogo são essencialmente três (mais um). Naturalmente, o primeiro é Jesus, o protagonista absoluto que toma a iniciativa, semeando as palavras e os sinais da vinda do Reino, sem «preferência de pessoas» (cf. At 10, 34). De várias maneiras, Jesus presta especial atenção
aos “separados” de Deus e aos “abandonados” pela comunidade (na linguagem evangélica, os pecadores e os pobres). Com as suas palavras e as suas ações, oferece a libertação do mal e a conversão à esperança, em nome de Deus Pai e na força do Espírito Santo. Não obstante a diversidade das chamadas e das respostas de acolhimento do Senhor, a caraterística comum é que a fé emerge sempre como valorização da pessoa: a sua súplica é ouvida, à sua dificuldade
presta-se ajuda, a sua disponibilidade é apreciada, a sua dignidade é confirmada pelo olhar de Deus e restituída ao reconhecimento da comunidade.

18. Com efeito, a ação de evangelização e a mensagem de salvação não seriam compreensíveis sem a abertura constante de Jesus ao interlocutor mais vasto possível, que os Evangelhos indicam como a multidão, ou seja, o conjunto de pessoas que o seguem ao longo do caminho, e às vezes até o perseguem, na esperança de um sinal e de uma palavra de salvação: eis o segundo ator da cena da Revelação. O anúncio evangélico não se dirige unicamente a poucos iluminados ou escolhidos. O interlocutor de Jesus é “o povo” da vida comum, o
“qualquer um” da condição humana, que Ele coloca diretamente em contacto com o dom de Deus e a chamada à salvação. De um modo que surpreende e às vezes escandaliza as testemunhas, Jesus aceita como interlocutores todos aqueles que sobressaem da multidão: ouve a lamentação apaixonada da mulher cananeia (cf. Mt 15, 21-28), que não pode aceitar ser excluída da bênção que Ele traz; abandona- se ao diálogo com a Samaritana (cf. Jo 4, 1-42), não obstante a sua condição de mulher social e religiosamente comprometida; solicita o ato de fé livre e reconhecido do cego de nascença (cf. Jo 9), que a religião oficial tinha descartado como alheio ao perímetro da graça.

19. Alguns seguem Jesus mais explicitamente, experimentando a fidelidade do discipulado, ao passo que outros são convidados a regressar à sua vida quotidiana: no entanto, todos dão testemunho da força da fé que os salvou (cf. Mt 15, 28). Entre aqueles que seguem Jesus, destaca-se nitidamente a figura dos apóstolos, aos quais Ele próprio chama desde o início, destinando-os à mediação autorizada da relação da multidão com a Revelação e com o advento do Reino de Deus. A entrada em cena deste terceiro ator não se verifica graças a uma cura ou conversão, mas coincide com o chamamento de Jesus. A eleição dos apóstolos não é o privilégio de uma posição exclusiva de poder e de separação, mas sim a graça de um ministério inclusivo de bênção e de comunhão. Graças ao dom do Espírito do Senhor ressuscitado, eles devem salvaguardar o lugar de Jesus, sem
o substituir: não para colocar filtros à sua presença, mas para facilitar o seu encontro.

20. Jesus, a multidão na sua variedade, os apóstolos: eis a imagem e o mistério a contemplar e aprofundar continuamente, a fim de que a Igreja se torne cada vez mais aquilo que é. Nenhum dos três atores pode abandonar a cena. Se Jesus não estiver presente e outra pessoa ocupar o seu lugar, a Igreja tornar-se-á um contrato entre os apóstolos e a multidão, cujo diálogo acabará por seguir o enredo do jogo político. Sem os apóstolos, autorizados por Jesus e instruídos
pelo Espírito, a relação com a verdade evangélica interrompe-se e a multidão permanece exposta a um mito ou a uma ideologia a respeito de Jesus, quer o aceite quer o rejeite. Sem a multidão, a relação dos apóstolos com Jesus corrompe-se numa forma sectária e autorreferencial de religião, e a evangelização perde a sua luz, que provém da revelação de si que Deus dirige a quem quer que seja, diretamente, oferecendo-lhe a sua salvação.

21. Além disso, há o ator “extra”, o antagonista, que traz à cena a separação diabólica dos outros três. Diante da perspetiva inquietadora da cruz, há discípulos que vão embora e multidões que mudam de humor. A ameaça que divide e, por conseguinte, impede um caminho comum, manifesta-se indiferentemente sob as formas do rigor religioso, da injunção moral, que se revela mais exigente que a de Jesus, e da sedução de uma sabedoria política mundana, que se julga mais eficaz que um discernimento dos espíritos. Para evitar os enganos do “quarto ator”, é necessária uma conversão contínua. A este propósito, é emblemático o episódio do centurião Cornélio (cf. At 10), precedente ao “concílio” de Jerusalém (cf. At 15), que constitui um ponto de referência crucial para uma Igreja sinodal.

Misericórdia é, inequivocamente, a “torneira” da paz

Dn 9, 4b-10; Lc 6, 36-38

A profecia de Daniel ajuda-nos a tomar consciência de que, não obstante sermos guiados pela Palavra do Senhor anunciada pelos profetas e pelos apóstolos, não estamos livres de praticar ações que façam sentir a vergonha sobre os nossos rostos. Ao mesmo tempo, a profecia manifesta a consciência de que, não obstante essas más ações, no Senhor Deus está a misericórdia e o perdão.

Nestes tempos que estamos a viver, em que se faz sentir uma certa descredibilização da Igreja por causa dos abusos sexuais e da forma como se está a lidar com a resolução dos mesmos, faz-nos bem proclamarmos o Evangelho de hoje. Tenho intuído que está a acontecer uma espécie de Inquisição ao contrário. E creio que se esta não tivesse acontecido e deixado as suas “mazelas” ideológicas na sociedade, pelo menos a forma como se está a abordar a Igreja na questão dos abusos seria outra.

O trecho evangélico de hoje, na sequência do convite de Jesus a amarmos os nossos inimigos, constitui um convite a superar qualquer condenação dos outros. A afirmação teologal ─ “sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” ─ identifica-se com a sua face antropológica ─ “como quereis que os outros vos façam, fazei-lho vós também”, como parte unânime de um modelo operativo decisivo para a evangelização.

Nos Comentáros à Bíblia Litúrgica (Assafarge: Gráfica de Coimbra 2, 2007), encontramos um estudo interessante desta passagem, lembrando-nos que a mesma se situa no coração do Evangelho e mostrando-nos Jesus a revelar o verdadeiro sentido de Deus e da vida dos homens. O autor ajuda-nos a refletir como o judaísmo tinha uma norma de justiça segundo a qual cada um havia de ser tratado de acordo com as suas obras; e no marxismo, a aceitação da dialética da revolução, na qual se inseria a necessidade de superar ou até, mesmo, destruir o inimigo para se alcançar a harmonia final. Nas políticas do mundo, sacrifica-se o bem dos pobres (que são muitos) pelo interesse de grupos minoritários. A tendência do egoísmo leva a amar os outros apenas na medida em que representem um valor para a minha vida. Diante destas conceções, a atitude de Jesus que demarca o Evangelho é de uma nitidez e força arrepiantes: “Amai os vossos inimigos”. As tendências apontadas acima não são absolutas. Ainda há pouco tempo, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou o carta “Placuit Deo” (sobre alguns aspetos da salvação cristã) para deixar claro como o individualismo e o desprezo do corpo são duas máscaras de heresias antigas (o gnosticismo e o pelagianismo).

Só é absoluta a urgência de semear o bem, amar sem procurar resposta, dar sem esperar recompensa, pagar com o bem os males recebidos. É tão estranhamento distinta esta forma de entender o amor, que os primeiros cristãos introduziram na linguagem grega uma palavra nova para o exprimir: “ágape”. E é por esta atitude que se caminha para a plenitude humana, nunca diminuindo os outros, seja quem for…

Portanto, a Igreja não é uma empresa, nem uma organização não-governamental ─ estamos sempre a ouvir esta verdade. No entanto, por vezes funciona como se fosse. A comunidade da Igreja é governada pela Trindade e por um desígnio maior de amor ultramundano que não descarta ninguém. Tenho por certo que o remédio para as feridas que a Igreja está a sofrer (internas e externas) está na sinodalidade. Ainda não é tarde, porquanto o melhor remédio muitas vezes só se encontra enquanto as feridas estiverem abertas. A parábola do Bom Samaritano tem nesta hora um significado mais realista, dando conta que é um estrangeiro que cuida do Cristo (e de quem o representa) que está caído no chão. Deixemos que ele O leve ao estalajadeiro. Deixemos de ficar meramente presos às sacristias. Os adros que nos fazem adentrar nas igrejas são os mesmos espaços que nos fazem adentar na vida e relacionamentos quotidianos com uma nova atitude.

A justiça de Deus é vermo-nos/ter-nos a todos como irmãos diante d’Ele. Temos o caminho até à meta para o conseguir

Ez 18, 21-28; Mt 5, 20-26; comentário inspirado em VV.AA. Comentáros à Bíblia Litúrgica. Assafarge: Gráfica de Coimbra 2, 2007.

Todo o ser humano é “capax Dei” (capaz de Deus), quer dizer, todo o ser humano é capaz de religião, de se ligar a Deus, uma vez que o Criador deixou em cada criatura sua um “rastilho” que pode ser (re)ativado pela liberdade humana.

Contemplando a atitude de Jesus perante a Lei, neste quadro de antíteses que Mateus nos apresenta, podemos reparar com a sua ajuda quantas vezes os seres humanos se agarraram à materialidade das leis deixando de verificar se está presente o princípio ativo com que elas podem beneficiar as pessoas: o amor de Deus que cria, dignifica dá sentido à vida humana. Deixar que as leis que dividam as pessoas em os que mandam cumprir e os que as devem cumprir é tergiversar as mesmas, reduzindo-as a casuística. Compreender a lei é outra coisa: como expressão da vontade de Deus, deve ser aceite na sua totalidade, muitas vezes ausente em quem pretende a todo o custo, marginalizando as pessoas, fazer prevalecer o rigor meramente externo do cumprimento da lei. O cumprimento da Lei sem coração não faz parte do projeto de Deus. A justiça de Jesus supera a dos escribas e fariseus! Na interpretação que faz da Lei, Jesus não anula o Antigo Testamento, mas leva-o a cumprimento superando falsas interpretações da mesma Lei, com uma nova interpretação. Isto significa que na interpretação dos valores do Evangelho, não podemos ficar com interpretações meramente históricas, o que implica caminhar com a ajuda do Magistério autêntico da Igreja (que evolui na interpretação, sob luz do Espírito de Cristo, para se manter fiel ao seu Fundador).

No Evangelho de hoje, Jesus centra-se no 5º mandamento (primeira antítese). Ele completa-o afirmando que a ira, o encolerizar-se contra alguém ou o insulto devem considerar-se equivalentes a dar-lhe a morte. Consequências práticas: para Jesus não é justo que um assassino vá a tribunal e um insultador cheio de ira não vá. Jesus afirma que aos olhos de Deus estas diferenças não existem. Agora imaginemos quanta ira por razões de defesa de religião!! E quanto autorreferencialidade ostracizou irmãos!? Não admira que, por vezes, neste Corpo de Cristo que é a Igreja, nos dê a sensação de estarmos a sofrer de uma espécie de má circulação.

Outra antítese presente no Evangelho de hoje é a que se refere à realização de ritos no templo, muitas vezes centrado na própria expiação de pecados, sem ter em conta a reconciliação com os irmãos. Bem, já sabemos que Jesus nos devolve ao caminho em direção ao irmão.

Outro caso é o que se refere ao litígio entre dois irmãos, diante do qual a moral de Jesus aconselha a que se reconciliem, chegando a um acordo no caminho, antes mesmo de chegar ao tribunal.

Desta liturgia de hoje concluo que são as atitudes do caminho, na relação com os outros, que determina a verdade da nossa fé celebrada. Não é que devamos adiar a nossa ida às igrejas para celebrar a liturgia ─ precisamos de ir lá buscar o alimento para o caminho ─, mas também não devemos descurar a avaliação da relação com os irmãos na vida diária, adiando a reconciliação com eles ─ precisamos de levar para a Liturgia o “fruto” do trabalho dos relacionamentos humanos. Quanto deste sabor falta ao pão ázimo levado para o altar? E quantas tentativas de reconciliação sacramental sem a matéria da omissão? Quanta Liturgia sem consequências morais (mudança de costumes)? Quanta religião sem uma forma ultramundana de amar? Talvez o ritmo entre a busca de coerência relacional com os irmãos e a credibilidade diante de Deus não esteja bem regulado. De tempos a tempos, a Igreja precisa de reforma para rever, à luz do mistério da Cruz redentora de Jesus, a tensão inevitável entre a Liturgia e a Vida.

O Dia Mundial da Oração, que ocorre em todas as primeiras sextas-feiras de março, celebra-se em mais de 170 países e tem como objetivo principal aproximar as várias raças, culturas e tradições pela oração, melhorando o diálogo, a compreensão, o relacionamento e criando laços de amizade e de trabalho. A ideia subjacente ao dia é que a oração e a ação andem de mãos dadas, tendo ambas uma grande influência no mundo. O Dia Mundial da Oração incentiva a todos os fiéis que acreditam no poder da oração a reafirmarem a sua fé, encontrarem forças na oração e tomarem consciência do que acontece no mundo e a não viverem isoladas.

Abu Dhabi tem um novo espaço de oração multiconfessional que congrega uma igreja, uma sinagoga e uma mesquita. A inauguração do centro foi a realização de um sonho e o primeiro fruto do Documento (sobre) Fraternidade Humana. A inauguração significa continuar a esperar por um futuro melhor entre crentes de diferentes religiões.

A oração alinha o nosso projeto pessoal de vida no projeto de Deus, tendo como pano de fundo a memória e como ponte a confiança

Est 4, 17. n. p-r. aa-bb. gg-hh; Mt 7, 7-12

A oração é um dos elementos “gramaticais” ou um conteúdo metodológico da quaresma que, associada aos outros dois que são o jejum e a esmola, nos ajudam a fazer o caminho até à Páscoa. E quanto mais feita em segredo, mais à atenção chama o Senhor, que tudo vê e sabe o que precisamos. Inicia e pressupõe, na continuidade, um projeto de vida que se vá afinando com o projeto de Deus, através de um discernimento contínuo.

No “mínimo” dos mínimos, Deus espera por um ato de consciência e de liberdade que pode concretizar-se num pedido (“pedi”), numa procura (“procurai”) e em importunar alguém (“batei à porta”), confiando que o Bom Deus é capaz de nos dar muito mais do que, sendo maus, nós somos capazes de dar a quem amamos. Repito: dentro de um projeto pessoal que aspire concretizar o projeto de Deus a nosso respeito. É curioso que a oração de Ester é semelhante à oração de Mardoqueu (no mesmo Livro) e à de Judite; como acontece ao Magnificat de Maria em relação ao cântico de Ana (cf. 1 Sam 2). Significa que estes orantes estavam como que alinhados no projeto de Deus, coincidindo em pedir e louvar dentro dos mesmos cânones que se referem à vontade de Deus sobre a respeito da sua vida. No mínimo da oração, é-nos pedida a proatividade, diante de algo que vejamos estar a interferir no caminho que acreditamos Deus trilhar para nós.

No “máximo” possível, a oração implica estarmos atentos e preparados para receber o que Deus tem para nos dar, dentro do seu desígnio de amor e na Sua atenção ao nosso caminhar sobre esta terra. No máximo, a oração implica serenidade para aguardar o que se pediu, demore o que demorar na lógica de Deus em relação ao tempo.

O mínimo e o máximo da oração terão de ter como “ponte” a confiança: para pedir-procurar-bater e para esperar-acolher o que Deus, na sua bondade, quiser presentear-nos.

Ester reza a Deus estando em perigo de morte. Não sendo o nosso caso, e para não nos perdermos em miudezas que não tenham que ver com o projeto de Deus (e que trazem à nossa oração muita aridez), se não tivermos graves motivos para rezarmos, abramos os jornais, que certamente os encontraremos.

O processo de conversão implica uma dupla confiança: na promessa de Deus e na fé pessoal/comunitária

Jn 3, 1-10; Lc 11, 29-32

Na profecia de Jonas hoje proclamada, saltam-me à vista dois aspetos:

1) Em relação a quem é enviado ─ Jonas: primeiro é convidado a levantar-se e a ir e só depois é que recebe a mensagem que irá apregoar. A Jonas é pedida a confiança na promessa de Deus.

2) Quanto à cidade de Nínive, que leva três dias a atravessar, só precisaram que Jonas apregoasse durante um dia, para que a mensagem se espalhasse e chegasse ao rei, que logo decretou o que seria eficaz para aplacar a ira de Deus. A Jonas é pedida a confiança no “sensus fidei” do Povo.

O povo de Nínive poderia estar desviado, mas ainda não tinha perdido a capacidade de proagir. Comparo esta situação à da deflagração dos incêndios que assusta e destrói a vida das comunidades, entre o aviso das autoridades e do envio de bombeiros e da capacidade de interagir das pessoas afetadas, de forma comunitária, procurando salvar a todos.

Deus dá quarenta dias a Nínive, como prefiguração do tempo da Quaresma que vivemos na Liturgia, para que a conversão seja um processo e não meramente um ato, processo no qual, à luz desta profecia, vejo três passos:

1º ─ A escuta da Palavra de Deus, mediante uma pregação consequencial (“daqui a quarenta dias…”);

2ª ─ O assentimento da fé através de sinais práticos (alimentação e vestes);

3º ─ A consolidação de medidas (o decreto do rei) que deem consistência à mudança de vida com que se responde efetivamente ao amor de Deus, que quer que vivamos!

Por vezes, acho estranho que a Quaresma seja vista ou organizada como um fim em si mesmo, a ver pela falta de criatividade com que se procura viver a fidelidade e pela fugacidade da celebração da Páscoa, como se os quarenta dias pudessem esgotar o poder dos cinquenta dias. Carecemos de novas formas de pregação que tire da premonição das consequências que se vislumbram no modo de viver humano, algum fruto sonhado pela Palavra de Deus que se nos antecipa no caminho, pela pregação, oração e ação.

Com o Evangelho aprendemos que quando não estamos abertos a colaborar com a salvação, como processo quotidiano de escuta e envolvimento no que a Palavra de Deus nos diz, tão pouco serviriam os sinais que desejamos, para onde transferimos a força necessária que seria proveitosa ao nosso crescimento para Deus.

Hoje, celebra-se o Dia Mundial da Proteção Civil. Surgiu em 1949 no protocolo 1 do Tratado de Genebra “Proteção das vítimas dos conflitos internacionais armados”, definindo-se como um sistema nacional de gestão dos serviços de emergência que proporciona assistência e proteção a toda a população perante um desastre ou acidente. Em Portugal, neste dia, organizam-se habitualmente simulações, exposições, ações de sensibilização e outras iniciativas que tentam informar e integrar a população em geral na proteção civil. Porque não, ao nível da vida da fé, aproveitar a quaresma para fazer “simulacros” que nos levem além de meras exposições de património do passado, mas verdadeiras exposições sobre o que poderá vir a acontecer se a atitude humana e cristã não melhorar a respeito daquilo que verdadeiramente nos faz experimentar a Páscoa?

Oração: voz entre dois silêncios. É mais “afinada” a voz daquele que perdoa

Is 55, 10-11; Mt 6, 7-15

Conheci um autor de teologia espiritual que definiu a oração como “Voz entre dois silêncios: o silêncio do Pai em quem a voz começa e termina, e o silêncio do coração humano que a recebe e, através da força do Espírito, a restitui como dom de si sempre mais pleno. O objetivo do seguimento é o de afinar progressivamente a voz humana, através do apuramento do significado, natureza e caraterísticas da oração cristã (Costa, Maurizio. Voce tra due silenzi. La preghiera cristiana. Bologna: EDB, 1998).

No Evangelho de hoje, Jesus é claro no método e consequente: falar pouco diante de um Pai que sabe o que precisamos antes de lho pedirmos. E ensina-nos a oração do Pai nosso, que tem o perdão aos irmãos como o “termómetro” de como vai a relação com Deus.

O jesuíta Franz Jalics, ao ensinar-nos a proporcionalidade incontornavelmente presente entre a nossa relação com Deus e os outros, disse:

Enquanto queirais impor a outros as vossas convicções ─ presunçosos pelo que sabeis ─ ninguém vos vai ouvir, mesmo que o que vocês têm para dizer seja a coisa mais valiosa que a humanidade possui. (…) A relação com os outros determina a nossa relação com Deus e vice-versa. A relação com Deus e a relação com as outras pessoas discorrem sempre em paralelo e que uma para a outra podem ser banco de prova ou controlo de autenticidade. Porque é o mesmo coração humano que entra em contacto com Deus e com os outros. Por esta razão, quem alcança uma atitude contemplativa no seu trato com Deus será também compreensivo com as pessoas com quem se relaciona e se abrirá a elas com confiança e paz. Claro que também é certo o contrário: quem não é capaz de entender os seus semelhantes e de comunicar-se com eles, tão pouco chegará longe na sua relação com Deus.

Franz Jálics, Escuchar para ser: dimensión contemplativa de las relaciones interpersonales, ed. Pablo d’Ors (Salamanca: Ediciones Sígueme, 2022).

A salvação é para se receber e praticar de graça. O drama dos pobres e aflitos de hoje é uma prequela do juízo final

Lv 19, 1-2. 11-18; Mt 25, 31-46

Num encontro do Papa Francisco com um grupo de jovens crismandos, em Roma, estes perguntaram-lhe o que podiam fazer para viverem de forma mais eficaz e direta os ensinamentos da Igreja sobre a missão cristã, uma vez que eram muitos conhecimentos e não era fácil de individuarem o que melhor poderia fazer. Ao que o Papa Francisco responde rapidamente: quereis pôr imediatamente em prática o Evangelho de forma a poderdes viver bem como crismados e entrar no Reino? Ide já ler e praticar o que está escrito no capítulo 25 do Evangelho segundo Mateus (o que se refere ao juízo final e à prática das obras de misericórdia).

Hoje penso naqueles que por causa das guerras, as catástrofes naturais e por causa de políticas económicas sem ética ou de uma vida cristã apática, têm de percorrer ou esperar que percorram viagens intermináveis, no tempo e no espaço, para terem acesso a um pouco de comida, como os irmãos desta reportagem. Como dizia o Cardeal Oscar Maradiaga, Sem ética não há desenvolvimento para ninguém (Porto: Edições Salesianas, 2016).

No Evangelho, Jesus deixa claro como se identifica com aqueles a quem se dirige no Sermão da Montanha, mais concretamente no discurso das Bem-aventuranças (Mt 5), assim como somos chamados a comportar-nos diante daqueles com quem Se identifica. Ao mesmo tempo, a proposta de Jesus legitima e completa a santidade proposta no Levítico. O drama do juízo final tem como prequela o drama que muitos pobres vivem hoje, como marginalizados da sociedade. E nesta, para além do Cordeiro Imaculado há: ovelhas que Se lhe assemelham ou cabritos que contrastam com a sua mensagem e estilo de vida, prejudicando ou impedindo a instauração do seu Reino de justiça, de paz e de amor.

Daqui extraio uma verdade: para viver a missão à luz do Evangelho, a Igreja vai buscar a sua identidade aos destinatários dessa mesma missão.

Rezo para que, a exemplo de muitos homens e mulheres da história da salvação, concretamente os Santos Patronos da JMJ Lisboa 2023, os Batizados de hoje saibam cada vez mais e melhor identificar-se com Jesus nos irmãos mais desfavorecidos que vivem perto ou longe de si.