Não é fácil renovar uma tradição, se a virmos sempre em contradição ou contraposição com a verdade. A antiga e a nova alianças estão “agrafadas” no mesmo Livro escrito pelo mesmo Deus

Gn 17, 3-9; Jo 8, 51-59─ Reflexão baseada em VV.AA. Comentáros à Bíblia Litúrgica. Assafarge: Gráfica de Coimbra 2, 2007.

O facto de amanhã se celebrar o Dia Mundial do Backup, lembra-me que, em informática, os que escrevem código para termos ao nossos dispor as belas e funcionais páginas da Internet ou os programas que nos dão tanto jeito no computador, para realizarmos as nossas mais variadas e úteis tarefas quotidianas, acontece uma coisa curiosa e nobre: os construtores de código não só não apagam o que outros escreveram, mas ainda respeitam o nome de quem os escreveu, escondendo com código especial as partes obsoletas (embora mantendo-as para histórico, mas sem ficar ativas) e acrescentando em cascata novas linhas de código que atualizam e aumentam as possibilidades dos programas. De geração em geração de programadores, esta tarefa é árdua e de responsabilidade vital em reconhecer o trabalho de outros e de o levar a uma versão extraordinária, para a qual serviram de degrau. Penso que esta realidade se pode comparar à relação entre os profetas e Jesus Cristo, sendo que este, com as suas palavras e ações, nos deixou o código definitivo como upgrade que somos convidados a incorporar na nossa forma de vida. Caminhando à luz deste divino upgrade…

Sem desconsiderar que a dor física de Jesus tenha sido imensamente grande pelas canseiras a que não se poupou, imagino que a dor maior terá sido a psico-espiritual, tendo em conta o que sabia e a responsabilidade que tinha de revelar a verdade com palavras e obras, em favor da humanidade que, ainda por cima, se recusava a dar passos no caminho que continua a ter de ser feito na história da salvação. Assegurar a defesa e a realização da vontade do Pai: eis o seu alimento. A mentira é a “serpente” que está presente desde a desobediência do primeiro homem, e que vai “mudando de pele”, não obstante a repetida promessa feita aos nossos antepassados e a nós transmitida sempre com novos contornos, mas fiel na essência.

Jesus livrou a mulher surpreendida em adultério do apedrejamento, não a condenando e perdoando-lhe os seus pecados. Quem defenderá, agora, Jesus das pedras que aqueles judeus têm para Lhe arremessar? Enquanto Deus não manifestar a sua glória na Cruz, Jesus ainda se pode ocultar, saindo daquele templo, par anão desperdiçar a sua Luz.

Os judeus defendiam a sua descendência física de Abraão, com os privilégios que daí queriam obter. Mas, as promessas vinculadas a Abraão não dependiam de pertença física, geracional, mas da pertença moral. Portanto, é por um caminho de coerência para com a verdade que é Jesus que se obtém a familiaridade com o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, que é Pai de Jesus, com quem enviou o Espírito Santo. É por um caminho de fé, justiça, de auto-domínio, de abertura a Deus, de aceitação do seu testemunho e, sobretudo, d’Aquele que Ele enviou. Apesar de se dizerem filhos de Abraão, pela sua conduta, os judeus pareciam bastardos.

O Evangelho traz, hoje, mais um tema que escandaliza os judeus: o da morte que não é sofrida por quem guarda a Palavra de Deus. Esta pretensão de Jesus supera os profetas. As palavras de Jesus “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia…” justifica-se através de uma tradição rabínica segundo a qual se julgava que a Abraão tinha sido dada a graça de ver os dias do Messias, ou seja, a era futura. O erro dos judeus era uma interpretação literal de Jesus, que os levava à incredulidade. Ao falar abertamente da sua pré-existência, Jesus quer apresentar-lhes a sua existência divina e eterna, à semelhança do modo como foi apresentado por João Batista “vem depois de mim, mas existia antes de mim”. Jesus está acima do tempo e para além dele afirmando como Deus: “Eu sou”. Os judeus julgaram como blasfema esta pretensão de Jesus, decidindo aplicar a Lei. Jesus oculta-se porque ainda não é a sua hora. A Luz do mundo retirou-se do templo.

Não pode ser livre quem obstrui a fonte que liberta. A mentira não pode ser filha da verdade, mas escrava do mal

Dn 3, 14-20. 91-92. 95; Jo 8, 31-42 ─ Reflexão baseada em VV.AA. Comentáros à Bíblia Litúrgica. Assafarge: Gráfica de Coimbra 2, 2007.

Sinceridade é dizer o que se pensa; autenticidade é transparecer o que se sente; liberdade é fazer a verdade. Porque esta, segundo, Jesus “far-nos-á livres”. E é por aqui, também, que Jesus se manifesta totalmente livre. Segundo João os judeus tinham acreditado em Jesus. Porém, não O assumem como fonte da verdadeira liberdade, como Palavra do Pai. Dizem-se filhos de Abraão, mas fazem as obras da mentira.

Como pode alguém ser libertado, sendo já livre? Como pode nascer de novo, alguém já nasceu? No quarto evangelho, é frequente termos de fazer a “distinção entre dois níveis de profundidade, para compreendermos o que se passou entre Jesus e os seus ouvintes, como, mais tarde, entre o cristianismo e o judaísmo, depois da rutura definitiva”.

Poderiam os judeus aceitar que Jesus acrescentasse alguma coisa à sua mentalidade judaica? Segundo esta, a herança recebida era muito mais importante e valiosa do que qualquer ensinamento que Jesus pudesse proporcionar. Ora, ouvir de Jesus “a verdade vos libertará” seria, assim, recebido como uma afronta. Ser meramente descendentes de Abraão era um princípio fundamental da superioridade dos judeus. É por isso que se pode dizer que o fundamentalismo é a ausência de um fundamento verdadeiro. Abraão não é o primeiro fundamento. Não é verdade, nem meia verdade. E os judeus, querendo viver como se fosse verdade, tergiversavam a herança que Abraão lhes deixou.

Enquanto as Comunidades não forem Centros de Caridade, nada se fará. É preciso que Jesus reine .

D. João de Oliveira Matos

Nas VI Jornadas de Teologia promovidas pelo Seminário Maior de Angra do Heroísmo, descobrimos como tem de haver uma complementaridade entre a piedade popular que, segundo o teólogo Paolo Asolan, é a forma correta pela qual a realidade cristã se encarna na cultura de um povo, e a necessidade de uma formação permanente transversal que, segundo D. Armando Domingues, afasta da nefasta tentação da completude verticalista (diria “tentativa mórbida de retidão”, sem rasgos de horizontalidade que transpareçam a verdadeira verticalidade, correspondência que define o que é verdadeiramente ser cirstão livre) que dificulta quer comunhão, quer a necessidade de criação de equipas multidisciplinares que possam ser capazes de olhar para o Povo de Deus. O reitor daquele Seminário concluiu que urge que se faça um percurso histórico rigoroso e realista do que foi e é a Igreja no arquipélago, enfatizou, salientando que é importante olhar para o passado para encorajar o futuro e encontrar a forma mais adequada de ser Igreja no presente e identificar uma pastoral para o homem de hoje. O tema destas jornadas foi “A Igreja nos Açores a caminho dos 500 anos”.

Que o Senhor nos dê a graça de sermos livres de realizar a caridade na verdade.

Na casuística farisaica, o inocente é transformado em réu para distrair atenções; na misericórdia divina, o mal é extirpado da pessoa culpada

Dn 13, 1-9.15-17.19-30.33-62; Jo 8, 1-11

A história de Susana faz-me lembrar todos os acusados inocentes, os de agora e de outrora, que não pactuam com propostas indecentes. E antes que “o feitiço se volte contra o feiticeiro”, infelizmente, o veneno sai da boca da cobra, procurando projetar o mal sobre alguém.

Daniel é, na sua voz de ancião jurisprudente, prefiguração de Cristo que, contra todas as leis da proporção moral, põe fim à ignomínia que é confundir o pecado com o pecador (a mulher surpreendida em adultério), diante daqueles que distinguiam a realidade da aparência (os fariseus e doutores da lei). Reparemos que o evangelista diz “mulher surpreendida em adultério” e não “mulher adúltera” como frequente e farisaicamente se diz. O adultério é um pecado, não um ser humano. É uma ação humana a evitar, contanto que não se mate o ser humano. São louváveis e corajosas, a este respeito, no decorrer da reflexão sobre os abusos, as reflexões de uma tentativa de jurisprudência onde se espelham os textos da Liturgia de hoje.

São Filipe de Néri costumava dizer “L’uomo da solo non ce la fa”, traduzindo: o ser humano, sozinho, não consegue fazer este tipo de mal. Talvez ele estivesse a fazer alusão às estruturas de mal que já se incrustaram nas instituições humanas. A respeito da origem dos abusos sexuais, é útil a alusão que Amedeu Cencini faz à perspetiva sistémica-estrutural de Gauss:

Nas pontas estão duas minorias: uma minoria escandalosa e uma minoria virtuosa. A grande curva pertence a uma maioria medíocre. O autor desta perspetiva propõe que esta maioria medíocre é o ninho onde se nascem os abusadores.

Mas ainda há uma coisa intrigante a meditar: aqueles fariseus não querem só atingir aquela mulher apanhada em pecado. Querem atingir o Mestre. Nas acusações anónimas que temos vindo a observar quanto aos abusos sexuais e na forma agressiva que se tem vindo a usar, mesmo afirmando que as vítimas devem estar em primeiro lugar, no centro das atenções e cura, o que parecer estar a ser atacado é o sacerdócio ministerial, não como figura decorativa (que alguns católicos se prezam de querer ter), mas como profecia para o tempo atual, numa Igreja que se quer em renovação.

Moral da história: o farisaísmo pode ser também uma tendência para a nidificação de vários tipos de abusos. Não tem que ver meramente com religião, como esta também não serve de argumento para a justificação de guerras. É uma questão da formação das consciências e da educação dos comportamentos. Como discípulos-missionários de Jesus Cristo, somos chamados a defender com coragem (“parresia”) a cultura do respeito para com o mistério da pessoa humana. Cencini chama ao “respeito” o elemento germinativo positivo que deve crescer, a par da atenção na prevenção dos abusos.

A vida eterna que Jesus nos quer dar já começa aqui na terra e prolonga-se no céu passando pelo “sono” da morte

Jo 11, 1-45

Uma das coisas curiosas que descubro na reflexão dos biblistas é que a habitualmente “ressurreição” de Lázaro ainda não é como a Ressurreição de Jesus. Justifica esta diferença o facto de que Lázaro “ressuscita” para voltar a passar pelo “sono” da morte, ao passo que a Ressurreição de Jesus ultrapassa definitivamente aquele passo obscuro.

Este texto desenvolve-se por um entrelaçado de aspetos que nos ajudam a aproximarmo-nos do mistério da morte e ressurreição. Sugiro alguns (sempre apoiado no pensamento dos estudiosos da Sagrada Escritura):

1) Jesus aproveita-se da existência do mal para manifestar a glória de Deus, como aconteceu com a resposta à situação do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). Trata-se de ativar a salvação e não outro objetivo que confunda ou atrapalhe a vida dos homens.

2) A glória de Deus já se manifesta nesta vida, quando um familiar recupera de uma doença ou se mantém vivo na circunstância de uma doença grave. A companhia de um ente querido doente, a partir de Jesus, não é uma circunstância a lamentar, mas um bem a celebrar ou dom a agradecer enquanto é tempo. Jesus experimentou essa familiaridade com os seus amigos mais próximos, de forma tremendamente humana, assumindo a sua humanidade e a humanidade dos seus na sua oração ao Pai. É o que tentamos fazer num funeral, por palavras muitas vezes desajeitadas quanto aos momentos de sofrimento. E o choro, que Jesus também transformou em divino, não fica de fora, como linguagem que supera as palavras.

3) A fé no “já e ainda não”. O diálogo com Marta e Maria reflete, em púbico, o que costumava ser em privado: o jogo entre a passividade na recetividade da Palavra e a atividade em sabermos acolher bem Jesus reflete-se na forma como nos relacionamos com o facto e a necessidade da imortalidade. Esta, na sua versão definitiva, resolve a dualidade entre passividade e atividade no ato de crer “em espírito e verdade” na Ressurreição que Cristo já transporta em Si na proposta de um modo de vida definitivo que concretiza (já a partir desta terra e desta carne caduca) o Reino de Deus. Os “dois dias” sempre mencionados em alguns destes episódios centrais do drama ou da travessia pascal só ficarão completos ao “terceiro dia” da Páscoa de Cristo.

4) É curioso que os cristãos partilhavam com os fariseus a fé na ressurreição, estes como uma espécie de fé herdada dos seus antepassados, aqueles por um dado adquirido no seguimento de Jesus. Hoje, nas nossas comunidades acontece o mesmo: quando rezamos no Credo “creio na ressurreição da carne” o que estamos a dizer? Seria oportuno perguntarmos: que ressurreição da carne estamos a fazer ou, melhor, a deixar que aconteça? Jesus diz a Marta, que acreditava de forma herdada e não adquirida: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; 26e todo aquele que vive e acredita em Mim nunca morrerá. Acreditas nisto?” Portanto, não é só no “último dia”, como Marta pensava, que seremos ressuscitados. A proposta cristã é a de irmos deixando ser ressuscitados, na medida em que deixarmos que a Palavra de Deus frutifique em nós e a partir de nós as boas obras do Reino. Neste sentido, também as comunidades precisam de ir ressuscitando, não só as pessoas, para que a Páscoa seja uma proposta pública aberta a todos.

O anúncio divino que “engravida” a disponibilidade de um “sim” pessoal

Lc 1, 26-38 ─ Na Solenidade da Anunciação do Senhor

Neste belo artigo do Rev. Padre António Henrique, vemos contemplado este equinócio da Primavera “abraçado” pelas duas solenidades de São José (este ano a 20 de março) e da Anunciação a Nossa Senhora (neste 25 de março). Estamos a nove meses da celebração do Natal, mistério que precede o acontecimento fundante da nossa fé, que estamos a preparar e prestes a celebrar: a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estes dois acontecimentos (o Nascimento e a Ressurreição de Jesus), iluminam-se mutuamente e ajudam-nos a perceber como quer Maria, quer José obedeceram a Deus, de forma unânime, respondendo afirmativamente ao seu projeto anunciado pelo Anjo.

Disponibilidade ─ é a caraterística que hoje me apraz contemplar e meditar na pessoa de Maria, tesouro que José aceitou proteger, juntamente com o tesouro que é Jesus (cf. Patris Corde). Contemplando-a em Maria e José, reparo que para quem a quiser imitar não precisa de pertencer a alguma classe social alta, não precisa de esconder as suas dúvidas, mas expo-las no diálogo com Deus, ter uma grande abertura de coração para arriscar a confiança no que Deus anuncia e promete, com a oferta de sinais que Deus coloca no caminho e que ajudam a confirmar o que diz (cf. catequese de D. Tolentino Mendonça, por ocasião da receção dos símbolos da JMJ em Roma). A disponibilidade é, antes de tudo, a conceção de um “Sim” que põe a caminho da realização do projeto de Deus.

É neste episódio proclamado nesta Solenidade da Anunciação do Senhor que engancha aquele outro que serve de pano de fundo à celebração da JMJ Lisboa 2023: Maria que vai à procura do sinal que Deus lhe indicou, pondo-Se a caminho da casa de Isabel. Para isso, levanta-se e apressa-Se a ir mostrar Aquele que já leva dentro de Si (cf. Lc 1,39 e seguintes).

O que dá credibilidade ao testemunho cristão num ambiente de desconfiança? Olhar para as boas obras de Jesus e acreditar no Pai. Não olharmos para o que somos e o que fazemos como fim-em-si-mesmo: o objetivo está mais adiante

Ex 32, 7-14; Jo 5, 31-47

Há uma técnica ou manobra de pilotagem de avião que se coloca em prática para manter a nave na rota prevista no caso de haver vento contrário: é o loop que o piloto faz atirando o avião mais para cima, de modo que o vento ao bater-lhe o mantém na rota desejada. Moisés também esteve no cimo do monte a receber os preceitos de Deus que poderiam manter o povo na rota certa ─ a terra prometida, onde correm leite e mel. Porém, o povo, em vez de olhar para o cimo e apontar para lá, deixou-se influenciar por maus ventos e desviou-se. É por isto que me preocupa, por exemplo, que alguém possa conceber a presença do padre como o centro da pastoral…

Vivemos um tempo em que se experimenta uma grande desconfiança em relação ao testemunho dos cristãos, nomeadamente aqueles que estão configurados com Cristo Cabeça e Pastor. Porque será? À primeira vista, pelos casos de incoerência grave entre o que se diz e o que se faz. A acrescentar a isto, existe ainda uma tendência herdada que nos leva a colocar o que somos, o que fazemos, as nossas instituições e movimentos como fins em si próprios, frequentemente apontando para nós e o que fazemos e não para um horizonte mais elevado. A nossa gestão de bens e de recursos humanos, por vezes, assemelha-se mais à cidade terrena do que à cidade celeste, ficando mais a dever àquela do que a esta, como fonte e meta. A tendência que as instituições da sociedade têm para se definirem como fim em si mesmas é semelhante à mesma tendência em algumas instituições religiosas. Então, qual a diferença?

No entanto, há uma grande injustiça que só Deus e os mais atentos é que poderão considerar: o encobrimento de maus atos e a forma como se levam agora a público, também leva a que a sociedade tenda a encobrir as boas ações, sobretudo as que se dizem ou se creem ser inspiradas pela justiça de Deus. Então, o que é determinante para a credibilidade do testemunho é a prática pública de boas ações, de forma humilde e apontando para Aquele que no-las mandou fazer pela Palavra proclamada, sem demoras, nem calculismos e de forma radical. Esta radicalidade também nos pode levar a alguma perseguição, mas esta é preferível do que a punição por maus atos. Jesus já nos tinha prevenido!

Jesus diz que não dá testemunho de Si mesmo, mas é outro que o dá por Ele. Este “outro”, na vista de alguns é João Batista, mas na declaração de Jesus é o próprio Pai a fonte direta do que Ele faz. João Batista apenas serviu de veículo ou instrumento, não é uma “instituição”. Jesus veio consumar as obras que o Pai começou, servido-se de nós, agora, como destinatários e instrumentos. Como diz Jesus, nem as Escrituras são um fim-em-si-mesmo, mas apontam para Cristo. Se um cristão ou um padre, hoje, se apresenta em seu próprio nome pode criar popularidade, mas se não apontar para Cristo o seu ministério não serve para nada. A glória que somos convidados a acolher é a de Deus e não a nossa. E a de Deus passa pela Cruz! O caminho cristão não é o fim, como não foi fim o caminho pelo deserto, em que o povo de dura cerviz se desviou frequentemente por causa da não valorização dos preceitos divinos, como lemos no Êxodo.

Poderíamos pensar que são as boas obras que dão testemunho credível, mas, na verdade, é determinante que a fé esteja nos olhos de quem as contempla, para se dar conta de que a fonte é o Pai do Céu. O desafio foi sempre o que de entre o que a Palavra diz e o que fazemos não haja muita distância, para que pouco ou nada acrescentemos de nós, mas atitudes que possam transmitir a obediência, a castidade e a pobreza. Como temos vindo a aprender com a leitura do Ofício, a posse da terra prometida, com frutos prometidos implica luta sobretudo interior, dentro das comunidades, para que se pareçam mais com a sua fonte e a meta do que o espaço que se habita (cf. Livro dos Números 12, 16 – 13, 1-3a. 17-33).

Na audiência geral de ontem, evocando a Evangelii Nuntiandi de Paulo VI, o Papa Francisco afirma que “não se pode evangelizar sem testemunho” e que “uma pessoa é crível se há harmonia entre aquilo que acredita e aquilo que vive: sobre como crer e como viver. Muitos cristãos só dizem crer, mas vivem de outra coisa, como se não o fossem”.

O drama de se colocar Deus contra a humanidade é superado pelo Filho do homem que faz a vontade de Deus. A cruz fecha a porta à resposta violenta do ódio e abre-a à prática do amor compassivo e justo

Is 49, 8-15; Jo 5, 17-30

No IV domingo da quaresma, Jesus afirmou aos discípulos diante do cego de nascença que «É preciso trabalhar, enquanto é dia, nas obras d’Aquele que Me enviou. Vai chegar a noite em que ninguém pode trabalhar. Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo» (Jo 9,4-5). Já no capítulo 5 hoje proclamado, Jesus afirma diante dos judeus que o Pai trabalha sempre e que Ele faz o mesmo que o Pai. Jesus anuncia a ação de trabalhar divina como permanente “kairós”, em contraste com a forma calculista como os judeus olhavam para o serviço do templo.

Para os judeus, há um desencontro entre o relógio e a graça de Deus, assim como a gratuidade da graça e a possibilidade da abertura pessoal à mesma. Graça e tempo não são incompatíveis, desde que este seja disposto ou organizado o mais passiva e gratuitamente possível e com justiça em favor da gratuidade da graça e da necessidade dos seus destinatários perante Deus. O calculismo, assim como o rubricismo (e outros fundamentalismos que obscurecem o verdadeiro fundamento) podem tirar ao “chronos” (tempo) a capacidade de ser veículo do “kairós” (graça). A utilidade do tempo que “gastamos” diante de Deus não se mede por minutos ou horas nem pelo dinheiro que vale o tempo, mas pelos benefícios colaterais provenientes da própria graça gratuita de Deus. Hoje, a sociedade celebra o Dia Mundial da Água, em que os discursos ecológicos acerca da mesma apelam a que ninguém fique para trás. E poderia acontecer o mesmo quanto ao recurso universal que é a graça suficiente de Deus? Haja abertura e solidariedade para que todos possam aceder à mesma de forma eficaz.

Os judeus odiavam Jesus por violar, assim, o sábado, não parando de trabalhar no projeto de salvação que o Pai Lhe incumbiu. Mas ainda há mais um motivo de ódio: chamar a Deus seu Pai, identificando-Se em perfeita sintonia com Ele, no que dizia e fazia. Como o povo diz de alguns padres: estava “a dar cabo da religião”, em vez de exclamarem com júbilo “tal pai, tal filho”.

Em boa verdade, em todas as mudanças de era se vai notando, ainda que seja por breves vislumbres, aquela “hora” que se impõe como verdade vinda do céu, entre os pesos pesados ─ as cruzes ─ que a humanidade se impõe a si própria, por um lado, e a indiferença com que se olham os problemas reais aos quais Deus nos pede que demos resposta. Pois a Cruz sofrida por Jesus está no meio deste drama como única e verdadeira resposta aos problemas reais da humanidade: o de não se usar a religião como violência, mas a de responder com a compaixão às necessidades mais básicas do ser humano, incluindo a de sentido para a vida, e à cura no caminho atribulado por acidentes e pecados. A cruz de Jesus é libertação do mal! A glória de Deus não é o “sábado” observado, mas um mendigo que se levanta, que volta à vida plena, “homem finalmente promovido a homem” (dizia o padre Primo Mazzolari). Religião que não se interessa do bem do homem e que fala só a si mesma ou “uma fé que não se interesse mais do humano, não merece que nos dediquemos a ela” (disse o teólogo Dietrich Bonhoeffer).

Doravante, o mistério pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo não deverá mais dar espaço a um tipo de religião que viva às custas do sofrimento das pessoas, mas seja parte do unguento que cura desinteressadamente. É exemplo e modelo o Bom samaritano da humanidade que veio para salvar e não condenar, que veio para libertar os prisioneiros e dar a vista aos cegos e anunciar que em todos os caminhos encostas haverá alimento e pastagens, como garante a profecia de Isaías, aonde os errantes serão levados pela compaixão. TUDO O QUE DESLIGAR O CUMPRIMENTO DE JESUS DESTAS PROMESSAS NÃO É DIGNO DE FÉ. Pode o Senhor esquecer-Se das suas criaturas? Jamais! A vida de Jesus é a comprovação disso!!

O caminho do deserto à iluminação pascal: 1/crer→2/escutar→3/amar→4/ver→5/viver ─ através de uma liturgia colaborativa que se desdobra em anúncio, profecia e testemunho

1Sm 16, 1b. 6-7. 10-13a; Sl 22 (23), 1-3a. 3b-4. 5. 6; Ef 5, 8-14; Jo 9, 1-41No IV Domingo da Quaresma

Já estamos no 4º domingo da quaresma. Começámos no 1º domingo, com Jesus, pelo deserto, aprendendo a superar o poder, o prazer e o possuir, optando pelo caminho da obediência filial, da castidade esponsal e da partilha fraterna, que se concretizam na oração, no jejum e na esmola.

No 2º domingo, Jesus levou-nos ao alto monte para purificar a escuta: escutá-l’O só a Ele e não os medos que nos impedem de procurar uma religião de sucessos, que nos leva a fugir das canseiras da vida quotidiana.

No 3º domingo, tivemos uma lição extraordinária de pedagogia da fé, da esperança e do amor, entre Jesus e a Samaritana. Nenhuma condenação, da análise à síntese que permite estar em missão de anunciar a água viva que é Cristo.

Neste 4º domingo, no caminho em que Se encontra com o cego de nascença, Jesus dá-nos mais um sinal da sua glória, apresentando-Se como a Luz do mundo que ajuda a esclarecer o problema do mal, diante do qual é mais necessário e urgente trabalhar do que condenar.

Temos neste relato uma fonte de sentido para o nossa catequese e/ou catecumenado que dá início à vida batismal dos cristãos, passando pelo rito da celebração sacramental. Este coloca-nos num caminho que pode ir da plausibilidade da visão farisaica à cegueira crente. Esta sabre os olhos ao caminho da graça divina, aquela tem uma fixação pela condição do pecado humano. Não há pior cegueira espiritual de que não acreditar que todo o ser humano é capax Dei, capaz de Deus. E Jesus veio para, em cada ser humano, despoletar o “parto” de cada caminho pessoal para Deus. Comunidades, estamos capazes de criar estes ambientes em que cada pessoa humana possa dar início e continuidade ao seu caminho de cura, anúncio e profecia? Para isso, é preciso uma fidelidade criativa, que não deixa ficar as coisas como estão. Esta rigidez costuma fazer parte do lastro farisaico que ainda habita a nossa história religiosa. Os cristãos humildes, não têm medo de reconhecer as ações sacramentais e pastorais dos batizados convictos e consagrados na missão de hoje.

A conversão é um processo entre a cegueira humildemente assumida e o acolhimento da visão da fé. E a confirmação de que está no caminho certo é a “via sinodalis”, na caridade para com todos. Se, pelo contrário, parece que vemos tudo, menos os irmãos com quem o Senhor nos chama a partilhar o caminho, então estamos no caminho contrário ao da conversão ao Reino de Deus. O banco de prova de uma conversão real e não meramente cosmética é a de que o caminho nos leva ao outro.

A cura do cego de nascença ─ personagem-tipo dos discípulos de Jesus ─ acontece em duas fases do encontro com Cristo, com várias etapas:
A) Aquela em que ele defende a sua identidade pessoal diante dos vizinhos.
B) Aquela em que ele dá testemunho de Jesus aos demais.
C) Aquela em que ele professa a fé diante do próprio Jesus.


No caminho, interagem várias personagens-esboço a indicar-nos fases ou aspetos e, inclusivamente, resistências à conversão cristã, em que o próprio Jesus serve de “júri”:
1) Os discípulos de Jesus: preocupados com a causa moral do mal, em vez do que é preciso operar para livrar do mal.
2) Os vizinhos do cego: habituados a vê-lo sentado como indigente, não reconhecem a sua dignidade aquém da sua condição de cego.
3) Os fariseus/judeus: insistem em ligar o pecado do cego ou dos seus pais à sua cegueira física, não sendo capazes de ver em Jesus a origem da cura integral, permanecendo, pela resistência, no seu pecado ou doença espiritual. Os que afirmam que o pecado é causa da cegueira física não reconhecem que a sua cegueira espiritual não assumida é causa do pecado.
4) Os pais do cego: fecham o filho, agora declarado adulto, na lógica fechada da sinagoga, responsabilizando-o temerariamente pela sua profissão de fé em Jesus.

O caminho da fé cristã tem, necessariamente, de passar de uma infância de certa forma ingénua à maturidade adulta, entre o que herdamos da educação cristã e as decisões pessoais livres que tomamos, na abertura às obras que Deus realiza no caminho de cada pessoa. Estas mostram como o verdadeiramente crente em Jesus pareça um estranho aos olhos do mundo, para demonstrar, pelas atitudes, a adesão à filiação divina. Doravante, na Igreja, o catecumenado é isto: a abertura livre de uma pessoa à manifestação das obras de Deus em Jesus (seu verdadeiro Sinal), no Espírito Santo.

No 5º domingo, quase no cume deste caminho quaresmal, ser-nos-á colocada diante dos nossos olhos da fé a possibilidade da ressurreição da carne, com a experiência da ressurreição de Lázaro.

«Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas». Amar a Deus traz sempre benefícios colaterais para todos

Dt 4, 1. 5-9; Mt 5, 17-19

Ao ser entregue o Evangeliário, é dito ao que vai receber o primeiro grau do Sacramento da Ordem: «Recebe o Evangelho de Cristo, que tens missão de proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas» (Pontifical Romano). Estas palavras consideram-se um verdadeiro projeto de santificação pessoal, voltado sobretudo para o bem dos que é chamado a servir. Por isso, guardar o mistério da fé, proclamado por palavras e obras, exige um contínuo estudo orante da Sagrada Escritura, onde se descobre a vontade de Deus e a revelação do mistério de Deus e do homem (cf. CEP, O Diácono Permanente na Igreja em Portugal ─ 5º A dimensão da diaconia na espiritualidade cristã, p. 44).

É assim que podemos entender as palavras de Jesus no Evangelho, acerca da “mais pequena letra ou o mais pequeno sinal”: deixar docilmente que, com a leitura orante da Bíblia, cada pequena letra e cada pequeno sinal construa o nosso ser, por Cristo, em direção ao Pai, no Espírito Santo. Ao completar a Lei, Jesus completa-nos a nós, se aceitarmos que o que está escrito é capaz de nos ajudar a superar as nossas fraquezas diante do projeto que Deus tem para a nossa humanidade. Assim, praticando e ensinando, viremos a ser grandes no Reino dos Céus. É, assim, pela positiva: vir a ser grande no Reino de Deus!!

O Senhor “plantou-nos” nesta terra para crescermos e não para diminuirmos. E a forma que tem de nos ajudar a crescer é “regar-nos” todos os dias com a água viva que jorra da Sagrada Escritura. E a rega com gotas pequenas é o contraste de um dilúvio. E em tempo de seca, almejamos que nenhuma gota se perca ou regresse aos céus em vão. Também o povo de Israel foi assim acompanhado no caminho para a terra prometida e para chagar a ela: dando-se-lhe a conhecer os preceitos a praticar para que tal acontecesse. Portanto, “tomar posse” da terra prometida, doravante, implica levar a sério os preceitos do Senhor. Este não tira nada, mas dá-Se todo e dá tudo.

Se, porventura, dando voz ao bel prazer momentâneo ou circunstancial, cada um se pusesse a omitir partes da verdade que salva, quando precisa, a rede que cremos servir de meio de salvação estaria rota, deitando a perder a pesca milagrosa.

Quando, em alguma crise na vida ou no serviço de um padre, se pergunta o que fazer, a melhor resposta ainda é: aceitando com humildade as limitações pessoais e, ao mesmo tempo, as exigências da vida e do ministério presbiteral, uma vez que as mesmas estão sugeridas pela experiência da Igreja, à luz do Evangelho e da Tradição, para que a vocação sacerdotal leve o padre a bom porto, com entusiasmo (= ter Deus dentro) tendo em vista a eficácia apostólica. A psicologia positiva concorda com isto quando ensina que o bom comportamento (apoiado nos valores) ajuda a curar e a ser. Por isso, o amor a Deus não pode ser um mero sentimento, mas um comportamento conforme com vontade divina. Daqui virão benefícios colaterais para quem assim se comporta e para aqueles a quem servimos, na reciprocidade de dons (sendo, por vezes, os destinatários do nosso serviço que nos dão mais do que aquilo que realmente lhes fazemos).

O mesmo se diga quando um padre toma posse de uma ou mais paróquias e/ou serviços eclesiais: a partir do seu serviço, Jesus quer completar tudo em todos. Por isso, é tão importante respeitar a profundidade da lei, como a amplitude dos seus destinatários, não se poupando a esforços para que a Palavra e os seus dinamismos salvíficos cheguem ao maior número possível. Isto exige que não só se viva intensamente o dia da tomada de posse e os ritos que a formalizam, mas o dia-a-dia da pastoral em escuta, discernimento e missão sinodais.

“O Evangelho é poder de Deus para todo aquele que crê” (Rm 1,16) (…) Jesus não deve estar no pano de fundo, mas no coração de todo anúncio. O mundo secular faz de tudo (e infelizmente consegue!) para manter o nome de Jesus longe, ou silenciado, em todo discurso sobre a Igreja. Nós devemos fazer de tudo para mantê-lo sempre presente. Não para nos refugiarmos atrás Dele, mas porque é Ele a força e a vida da Igreja.

Segunda pregação da Quaresma do card. Raniero Cantalamessa, na presença do Papa Francisco

A missão de praticar o poder num sinal, deixando de lado os sinais do poder. Não reagir com irritação, mas interagir com o silêncio

2Rs 5, 1-15a; Lc 4, 24-30 ─ No 10º Aniversário da Eleição do Papa Francisco

Gostaria de testemunhar com humildade que quando regresso às minhas origens familiares costumo dizer que vou a casa dos meus pais. Sinto-os como meus e, ao mesmo tempo, como destinatários da minha missão. Eles deram-me de graça e eu, segundo o Evangelho, devo dar-lhes também de graça o que recebi, amplificado pela educação cristã que me deram, desenvolvida depois pelos ensinamentos e o acompanhamento da Igreja.

Os pais daqueles que seguem e se entregam por Cristo sabem, como sabiam os pais de Jesus, que a origem da nossa vocação é Deus. Mas não é assim com toda a gente, sobretudo quando a mensagem que o mensageiro de Cristo traz não confina com as sensibilidades do povo. Por isso, e uma vez que as nossas terras têm, também, os seus pastores, é prudente respeitar o trabalho destes e, na comunhão, optar pela discrição, quando visitamos as nossas origens. Estas nunca deixam ou devem deixar de ser “Betânias” para o descanso físico e espiritual.

Mas o aspeto que me chama mais à atenção no Evangelho de hoje é o facto de que Deus nos envia a uma missão muito precisa ─ temática, demográfica e/ou geograficamente ─, como fez com Elias e Eliseu, segundo os seus dons e as necessidades reais da humanidade. O caminho que significa a vida de um homem de Deus não vale pelas multidões que o seguem ou pelos atos extraordinários que faça, mas pelos gestos significativos que façam a diferença na vida de pessoas concretas. Estas é que serão, posteriormente, as “pregadoras” dos sinais realizados por Cristo em nós.

Outro aspeto interessante da Palavra de hoje está na primeira leitura, na experiência do sírio Naamã, evocada por Jesus no Evangelho: a cura que aquele homem precisava estava a uns poucos passos e através de uns simples procedimentos. Para quê complicar, se a salvação está próxima de nós? A Palavra, a Eucaristia, a Penitência, a Oração, o Jejum, a Esmola ─ são procedimentos que Jesus, na e a partir da Igreja nos continua a oferecer como lugares e modos de salvação.

No Evangelho, é significativo que Jesus fale aos seus conterrâneos, mas, depois, não fuja deles, mas caminha pelo meio deles em silêncio, seguindo o seu caminho. O Papa Francisco, ao longo destes 10 anos de Pontificado, também nos proporcionou algo idêntico à atitude de Jesus, com palavras oportunas e gestos silenciosos, mas eficazes, a transparecer a mensagem e a salvação de Jesus, como terapia para a globalização da indiferença. E como presente de aniversário, o Papa somente pede a paz.

Fiquei surpreendido ao saber da notícia de que 90 adultos pediram o Batismo e o vão celebrar brevemente no Algarve; e ainda mais surpreendido pelas notícias de milhares de batizados adultos na França. É um sinal de esperança.