Ressuscitar significa não trocar a casa pelos andaimes na hora de habitar o céu definitivamente, ainda que lá possa eternizar-se a memória deles
Tb 3, 1-11a. 16-17a; Mc 12, 18-27
Os saduceus rejeitavam a ideia da Ressurreição, que fazia parte da espera messiânica, e negavam a imortalidade da alma. Eram céticos em relativamente à vinda messiânica. Estavam a ser oportunistas, meramente apoiados no cânone do Pentateuco e relativizando a literatura apocalíptica recente e a tradição oral. Os saduceus acreditavam que um homem ressuscitava quando o seu irmão lhes “suscitava” descendência. Para eles, a eternidade de um homem confundiam-se com a conservação da espécie. Sofriam de realismo pouco ou nada esperançoso. O argumento apresentando no evangelho de hoje fazia parte da casuística dos doutores da Lei, a antiga regra do “levirato” ou do casamento com o cunhado, que se descreve assim, segundo o Pentateuco: “Quando dois irmãos residirem juntos e um deles morrer sem deixar filhos, a viúva não irá casar com um estranho, o seu cunhado é que se unirá a ela e a tomará como mulher, segundo o costume do levirato. Ao filho primogénito que ela tiver pôr-se-á o nome do irmão morto e não se extinguirá o seu nome em Israel” (Dt 25,5-6). Portanto, para os saduceus a única ressurreição que existia era esta, da perpetuação da linhagem humana expressa no nome. O resto era sem sentido.
Para Jesus, a fé na Ressurreição é a fé no poder de Deus. Deus tem o poder para criar tudo novo. O crente não deve perder-se nas arquiteturas racionalistas da fantasia humana. Porque Deus é um Deus de vivos e não de mortos. A fé de Jesus não é uma projeção deste mundo num outro mundo criado pela imaginação. Pelo contrário: a fé é abertura a Deus e faz que o totalmente Outro crie o totalmente outro.
Não foi só aos saduceus que custou relativizar o casamento em comparação com a vida nova da Ressurreição. Ainda hoje, nomeadamente na comunidade dos crentes (e os saduceus também faziam parte do grupo dos “crentes” daquele tempo) custa muito lidar com a instituição matrimonial em confronto com a vida futura. Por defeito ou por excesso de consideração, acaba-se por substituir o objetivo pelo acessório ou o centro pelo periférico, a casa pelos andaimes quanto à hora de habitar o céu definitivamente. Pergunte-se aos cônjuges de um Matrimónio o que pensam sobre o que é desde já considerarem-se irmãos, como inspira o Livro de Tobias! Alguns responderão “credo!” Ou então, coloquem alguns na hipótese de perpetuarem a sua relação com o cônjuge no céu, após a passagem pela morte! Alguns também dirão “credo!”
No Evangelho, Jesus parece ser claro quando à consideração do casamento como instrumento para alcançar, na vida futura, a hipótese de ser “como os anjos nos Céus”. A instituição do Matrimónio cristão deu passos na linha da perfeição deste instrumento, mas ainda não é a máxima perfeição, diante da vida nova da Ressurreição. Quando dizemos que o Sacerdócio Ministerial não é um estado de vida na ordem dos fins, mas dos meios ou instrumentos, estamos a dizer o mesmo do Matrimónio. Mais na ordem dos fins está o Batismo que nos enxerta já em Cristo para a vida eterna.
A negação da vida eterna está na perpetuação de um meio ou instrumento para além do que é devido pelo mistério de Deus, ou seja, para além da morte. Ainda que os dados da fé nos ajudam a compreender que o Reino já se instaura aqui, não estamos autorizados a criar um céu à imagem da terra, correndo o risco de diminuir o poder de Deus que as Escrituras nos ajudam a vislumbrar.
Por outro lado, garantir, apoiar e defender um estado de vida “até que a morte nos separe” (isto vale tanto para os Matrimónios como para qualquer estado de Vida Consagrada) significa que a construção da morada eterna não é fácil se andarmos a mudar de andaimes todos os dias, mas melhorá-los e garantir-lhes segurança, no que toca à opção fundamental, motivações, sentimentos, atitudes e comportamentos que garantem a vida eterna. Para acreditarmos que um estado de vida, assumido no que depende de nós como um bom meio para um bom fim, primeiro teremos de acreditar, arriscando, no fim que é Deus e no que depende d’Ele e só d’Ele. É insustentável, do ponto de vista cristão, viver um Matrimónio sem esperança da Ressurreição. O mesmo vale para o sacerdócio ministerial! Quantas famílias, por causa da suposta preservação da sua espécie, afastam os seus de qualquer tipo de consagração, mesmo a do Matrimónio de fecundidade cristã. Quantas vidas não são em crescimento até à versão que nos faz mais à imagem e à semelhança de Deus só porque o ser humano só acredita nas suas ideias e raízes pouco profundas que acabam por não beber nas fontes da verdadeira fé.
Acredito que no céu, o Matrimónio entre Maria e José já não seja meramente um andaime, dado o papel que exerceram na obra divina da salvação. O mesmo penso dos Santos e dos carismas que o Espírito Santo nos doou com as suas vidas.
Respeitar as multidões sem ter em conta Jesus leva a emplastificar as relações e o ambiente
Tb 1, 3 – 2, 1b-8; Mc 12, 1-12
Hoje celebra-se civilmente o Dia Mundial do Ambiente. É evento anual que tem como objetivo assinalar ações positivas de proteção e preservação do ambiente e alertar as populações e os governos para a necessidade de salvar o ambiente. Todos os anos, as Nações Unidas apresentam um tema, que serve de ponto de partida para o desenvolvimento de ações de celebração do Dia Mundial do Ambiente em mais de 100 países, com variadas atividades programadas em função desse tema. Os eventos visam apresentar novas formas e métodos de preservar o futuro da humanidade, seja através de ações individuais do cidadão ou coletivas. Nas escolas esta data assume especial importância, com a chamada de atenção para a preservação do meio ambiente junto das crianças. Este dia puxa assim pelas pessoas, estimulando o desenvolvimento de ações que causem um impacto positivo no meio ambiente.
Este ano, a ONU propõe o tema soluções contra a poluição plástica. O seu secretário-geral defendeu a construção de um futuro mais limpo, saudável e sustentável. Para ele, o mundo tem que combater o problema de “consequências catastróficas”.
Não é de todo descabido refletirmos, à luz do Evangelho de hoje, que o Criador nos “arrendou” esta vinha que é o nosso planeta, que o Papa Francisco nos habitou a chamar de “casa comum”. E todos os que querem defendê-lo para o bem da humanidade, frequentemente, são banidos, seja por acusação de falsas razões ideológicas, seja por populismo. Respeito é o sonho do Dono desta Vinha para os seus filhos. Só a partir deste respeito poderemos entrar numa economia de comunhão, seja de bens materiais (quanto à sustentabilidade terrena), seja de bens espirituais (quanto à eterna longevidade).
Não andamos só a “emplastificar” a vida física; por vezes, também se “emplastifica” a vida espiritual, a começar pelo âmbito das relações humanas nas quais se deve espelhar ou confirmar a relação com Deus. A atitude pedagógica de Jesus para com os sacerdotes, os escribas e anciãos vem de longe: começou pela consideração do mau-uso do Templo, que Jesus “chicoteou”, levando a que fosse questionado quanto à sua autoridade. A Palavra de Deus de hoje ajuda-nos a compreender que o que está a acontecer com a Casa Comum relaciona-se com o que está acontecer com o Povo de Deus: não se respeitando os vínculos importantes entre as pessoas leva-se a que as suas atitudes e hábitos se deterioram, procurando-se, depois, o preenchimento do vazio através da tendência do descartável.
É curioso que os mercados antigos obrigavam a uma maior relação entre pessoas, encontrando-se quase tudo à distância de uma pergunta e quase tudo era tirado de uma caixa, pesado numa balança e pago consoante o que uma pessoa precisasse. Hoje, os hipermercados quase que excluem a hipótese de uma conversa com um humano, encontrando-se todas as unidades embaladas com o famoso plástico, que obrigam a comprar mais do que é preciso.
A desproporcionalidade da misericórdia de Deus compreende-se melhor a partir de uma Tríplice Ternura

Ex 34, 4b-6. 8-9; 2Cor 13, 11-13; Jo 3, 16-18
O melhor nome de Deus que Jesus nos ensinou a dizer foi Pai de misericórdia e a melhor maneira que nós temos de o perceber é acreditar no nome do Filho Unigénito de Deus. Já no princípio, no Êxodo, naquele encontro maravilhoso entre Moisés e o Senhor, aquele levanta-se e vai ao monte e o Senhor baixa da nuvem para lhe dizer que é «um Deus clemente e compassivo sem pressa para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade». Moisés leva nas mãos umas tábuas de pedra para que o Senhor lhe indique o que o povo de dura cerviz deve fazer para viver conforme os desígnios de Deus criador. Por vezes esquecemos esta “admonição” aos Mandamentos, sem a qual estes parecem uma mera declaração de deveres que se ficam pela intenção de serem cumpridos para um agradar externo. Esquecemo-nos que o Pai Criador é o Eterno (Ch)Amante, correndo o risco de demorar a responder-Lhe.
Jesus proclama a Nicodemos que a Sua presença no meio da humanidade é expressão sublime do Amor de Deus ao mundo, para que tenha a vida eterna todo aquele que acreditar no seu nome. Acreditar ─ é o mandamento que Jesus escreve na “tábua” de carne que é o coração de Nicodemos e de todos nós. Por vezes, olhamos para o Mestre como um mero professor de doutrinas (como os escribas) e demoramos aceitar que Ele veio a nós como Filho para aprendermos a ser filhos de Deus n’Ele. Esquecemo-nos que Jesus, Filho Unigénito, é o Eterno Amado, demorando a ser salvos pela fé.
O Espírito Santo inspira o Apóstolo Paulo a garantir aos seus irmãos que o esforço por ser ─ alegres, ocupados com a perfeição, animados, unânimes e pacíficos ─ é sinal da presença de Deus do Amor e da Paz no meio deles, assim como a graça de Jesus Cristo e a Comunhão do próprio Espírito Santo. O ósculo santo é o selo desta solidariedade e subsidiariedade entre Deus, os Santos e o Povo. Por vezes, demoramos a compreender que não estamos sozinhos e que nos foi dado um Consolador e Defensor pelo Filho Jesus e pelo Pai. Esquecemo-nos que o Paráclito é o Eterno Amor que nos quer dar a Paz.
O Povo de Deus canta na Missa Vespertina da Ceia do Senhor “Onde há caridade verdadeira, aí habita Deus” (Ubi caritas est vera, Deus ibi est). A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja e significa amor recebido e doado, sem que nenhum sentimento ou ação humana diminua este Amor vindo da Tríplice Ternura.
A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Para a Igreja – instruída pelo Evangelho –, a caridade é tudo. A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança.
Caritas in veritate 2
A Solenidade da Santíssima Trindade serve para nos compreendermos diante das ações que as Três Pessoas que formam um só Deus fazem em favor da humanidade, a saber: criador (o Pai), libertador (o Filho), defensor/consolador (o Espírito Santo).
O ser de Deus desvela-se por uma dinâmica centrífuga, porque tem como plano a salvação de toda a humanidade. Na circunstância em que te apresentassem um deus que seja só para alguns, duvida… vem de ideias ou política egoísta. Na hora em que te falarem de um Deus que sai de Si para se dar eternamente, exigindo reciprocidade num amor que se expande: é esse o caminho de eternidade!
A visitação de Maria é modelo do caminho missionário da Igreja, sintetizado no levar Jesus de pessoa a pessoa
Rm 12, 9-16b; Lc 1, 39-56, na Festa da Visitação da Virgem Santa Maria
O Evangelho desta festa mariana é o leitmotiv da preparação e vivência da JMJ Lisboa 2023. Portanto, muitas coisas se têm certamente dito sobre este texto, como forma de entusiasmar os jovens (e não só) a viver este grande acontecimento. O aspeto que mais me surpreende é a motivação que faz Maria “pôr-se a caminho” e a dirigir-se “apressadamente” para a montanha, em direção à cidade de Judá onde se encontra sua prima Isabel. E essa motivação está inscrita no momento da Anunciação, feita pelo Anjo a Maria: «O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá. Por isso, o que é concebido santo será chamado Filho de Deus. E eis que Isabel, tua parente, também ela concebeu um filho na sua velhice e este é o sexto mês para ela, a quem chamavam estéril, porque nenhuma palavra que vem de Deus é impossível» (Lc 1, 26-38). Nesta declaração do Anjo, Maria vê o seu “susto” resolvido e declara o seu Sim.
Portanto, no princípio do caminho está um “Sim” dado com fé à Palavra de Deus. No horizonte do caminho está o sinal que confirma a razoabilidade desse sim. Diz D. Tolentino Mendonça que o que faz mover Maria é poder “
confirmar a experiência da sua fé; Maria tem fome e sede de ver com os seus olhos; quer tocar a condição tangível e histórica dessa verdade que lhe foi anunciada e que a coenvolve. Por isso, a pressa de Maria não deve ser entendida simplesmente em sentido físico: é dentro de si, no seu coração que Maria tem pressa, que Maria vibra na expectativa de Deus. A sua pressa é uma disposição interior, um estado de espírito, o vivo desejo de contemplar alguma coisa que ocupa agora o centro do seu coração. Maria quer ser testemunha. Ela tem a pretensão – que é, no fundo, aquela de todo o coração crente – de verificar que os sonhos de Deus não se dissipam no nada como bolas de sabão no tempo, mas transformam efetivamente a vida, rasgando-a a uma esperança maior do que ela própria.
Card. José Tolentino de Mendonça
Paulo, ao exortar aos romanos (e a nós também) que a sua caridade seja sem fingimento, está a dizer isso mesmo: que a caridade transporte dentro Jesus Cristo e a consciência das suas promessas. O caminho pessoal e comunitário, sob esta perspetiva, não nos levam ao acaso e por nada, mas para um horizonte preciso onde confirmaremos todos as promessas de Deus que se resumem na salvação da humanidade.
Que cada um de nós saiba vislumbrar em cada versículo ou trecho da Palavra de Deus a resposta a uma inquietação, o convite a movermo-nos e o sinal que justifica este movimento.
Santa Maria, Mãe da Igreja, no caminho entre a solidão, a solitude e a solicitude
Gn 3, 9-15.20; Jo 19, 25-34 ─ Na memória de Santa Maria, Mãe da Igreja
À Virgem santa Maria foi atribuído o título de «Mãe da Igreja», porque deu à luz a Cabeça da Igreja e se tornou a Mãe dos redimidos, quando seu Filho ia morrer na cruz. O papa são Paulo VI confirmou solenemente a mesma designação, na alocução aos Padres do Concílio Vaticano II, no dia 21 de novembro de 1964, e decidiu que todo o povo cristão honrasse, agora ainda mais, com este santíssimo nome, a Mãe de Deus. No dia 11 de fevereiro de 2018 o papa Francisco inscreveu esta memória no Calendário Romano geral na segunda-feira depois de Pentecostes.
… este nome pertence à genuína substância da devoção a Maria, porque se justifica perfeitamente na própria dignidade da Mãe do Verbo Encarnado. Efectivamente, assim como a maternidade divina é a causa pela qual Maria tem uma relação absolutamente única com Cristo e está presente na obra da salvação humana operada por Cristo, assim também da maternidade divina brotam as relações que intervêm entre Maria e a Igreja; já que Maria é a Mãe de Cristo, que, desde o primeiro instante da sua Encarnação no seu seio virginal uniu a si como Cabeça o seu Corpo místico, que é a Igreja. Maria, portanto, como Mãe de Cristo, é também Mãe dos fiéis e de todos os pastores, isto é, da Igreja.
Papa Paulo VI
Há dias, refletia o texto do Evangelho de hoje com a minha Equipa de Nossa Senhora, dentro do tema “Eles não têm mais companhia”, num ano em que todos os temas são paráfrases da afirmação de Maria nas bodas de Caná “Eles não têm mais vinho”: “Eles não têm mais casa”, “Eles não têm mais pátria”, “Eles não têm mais educação”, “Eles não têm mais saúde”, “Eles não têm mais diálogo”, “Eles não têm mais respeito à Criação”, para todos nos dispormos a acolher, beber e distribuir o “vinho novo” que Jesus nos oferece.
“Vinho novo” é, também, a companhia junto de quem se sente só, no sentido daquela solidão que é uma das pobrezas mais profundas que o ser humano é capaz de experimentar, fruto de um isolamento causado pela falta de amor. A Madre Teresa de Calcutá sabia que esta era a “fome” mais terrível que um ser humano poderia sofrer.
O próprio Jesus pôde sujeitar-se a esta solidão pela humanidade, para que fosse consumada toda a Escritura. O sentido causativo daquela “hora” está bem patente, de onde transborda o seu hálito divino, o Espírito Santo. A partir daquela hora, já ninguém estará só. Nesta hora, nasceu a solitude, que é a possibilidade de ninguém se sentir só, mesmo na mais extrema solidão, porquanto o Espírito de Jesus não tem limites, porque por obediência ao Pai sopra onde quer. Naquela hora, nasceu também a solicitude que faz parte integrante do ser da Igreja, como casa de acolhimento de todos os que se sentem sós e dos que vivem, por opção, a solitude.
Solitude e solicitude são palavras muito próximas. O dicionário não sabe distinguir solitude de solidão. Enquanto esta nos pode fechar em nós próprios, deixando que o isolamento nos leve ao desespero; a solitude, ─ com a atitude da consideração, desvelo, cuidado ou diligência ─ vivida à luz do Espírito que Jesus nos dá, ajuda-nos a viver de uma completude que pode transbordar em solicitude para com quem vive só. É o que permite da pobreza humana partilhar a riqueza de Deus.
É pela serenidade que Maria nos ensina a passar da possibilidade da solidão à solitude e da solitude à solicitude. É o que vemos nos passos que Ela percorreu na vida de Cristo, entre a Anunciação e o Calvário. E entre a Ressurreição de Jesus e a vida da Igreja em todos os tempos, pelas invocações e títulos que a Ele os fiéis dedicam, nas circunstâncias mais variadas do viver e do sofrer humanos.
O Papa Francisco afirma que “ninguém pode enfrentar a vida isolado; precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos dessa mesma terra que nos abriga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos” (FT 8). “Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque ‘a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos’. Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e fragiliza a dimensão comunitária da existência” (FT 12).
Hoje, peço pelos que vivem e se sentem realmente sós, para que o Espírito de Deus sopre na consciência de alguém que se aproxime para lhes dar companhia e restaurar no seu coração a alegria de viver. Rezo também para que haja, no viver dos cristãos, mais “reconciliação” entre a liturgia eucarística e a liturgia da vida, para que dos Sacramentos os homens de hoje possam ver transbordar o amor de Deus.
Pentecostes: uma “bazuca” divina com plafom ilimitado de dons para todos
At 2, 1-11; 1Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23
Plenitude e universalidade são as palavras que me parecem resumir a celebração do Pentecostes. Plenitude do Mistério de Cristo, que sopra sobre os seus discípulos o Espírito Santo e universalidade da missão que lhes incumbe em relação a todas as nações da terra. A profissão de uma só fé na diversidade de línguas.
Num momento delicado da história da Igreja nascente, o primeiro grupo de discípulos viu-se entre o medo e a esperança: medo dos judeus e a esperança da libertação. Por isso rezaram: “MANDAI, SENHOR, O VOSSO ESPÍRITO E RENOVAI A TERRA”. A convicção do salmista que inventou o salmo 104 era a de que uma planta sem o ar, o alento divino, definha e morre. Assim, o sopro de Deus que é o o Espírito Santo representa uma nova esperança para aqueles que se sentem enclausurados no medo. Dentro do medo, nenhuma vida pode crescer, florescer e vir a dar fruto. A renovação da terra implica que peçamos e acolhamos os dons do Espírito Paráclito, Consolador e Defensor.
O Espírito Santo do Pentecostes representa uma espécie de “bazuca” de graça divina com plafom ilimitado de dons para todos, de modo a que ponham os talentos ao serviço do bem comum.
A diversidade sempre foi a forma de o Espírito de Deus Se manifestar, através de uma linguagem que não é só feita de palavras, mas também de ações. Na vida do Espírito Santo às nossas vidas, os dons que Ele nos traz transformam as nossas aptidões e talentos em serviços permanentes, através de compromissos concretos.
Nas leituras da Liturgia da Palavra deste Domingo do Pentecostes, vislumbramos o método que o Espírito Santo usa para levar a Páscoa de Jesus ao seu efeito, como lufada de ar fresco que renova a vida da humanidade. Vejamos:
1) A identificação com Cristo: Paulo indica-nos que só é possível proclamarmos a fé em Jesus Cristo como nosso Senhor pela ação do Espírito Santo; sem esta fé, não haveria sequer Igreja, ainda que com medo.
2) A expansão missionária: o Espírito navega entre uma pequena comunidade de apóstolos e a consideração de uma multidão de destinatários (de todas as nações e línguas).
3) A harmonização das diferenças: é tarefa do Espírito Santo, que nos ajuda a colocar o que somos e sabemos fazer ao serviço de todos; a imagem do corpo é muito sábia a este respeito. à luz da cabeça que é Cristo, nenhum membro, por mais sábio e honroso que seja, não pode dizer a outro que não precisa dele! É pelo Batismo que estamos todos unidos no mesmo Deus que opera tudo em todos.
4) O fim do domínio do pecado: com o dom do Espírito concedido à Igreja, foi colocada como “uma faca e um queijo” nas mãos dos Apóstolos a possibilidade de pôr fim ao domínio do pecado sobre nós e, com o poder do Espírito, dissolvê-lo para que reine em nós a vida nova que Deus nos concede em Jesus Cristo.
A amizade humana é a melhor antecâmara do amor cristão
Jo 21, 15-19
As perguntas que Jesus faz a Pedro sobre se O amava acontecem depois da Sua morte e ressurreição. Portanto, é o Ressuscitado que faz estas perguntas ao Apóstolo. E não foi só para o fazer o primeiro Papa, mas para lhe ensinar o modo e o caminho para a vida eterna, com que haveria de confirmar os seus irmãos como Pontífice.
Creio que «tu amas-me?» é a pergunta que Jesus faz a cada um de nós quando nos confrontamos com a partida de um ente querido. Não para nos julgar se porventura caímos no desamor, mas para Se baixar mais uma vez à nossa condição de fragilidade, nomeadamente no que toca às coisas mais simples do amor. A heroicidade que Jesus pede a Pedro, naquele momento, não é prometer estar sempre com Ele a pontos de o vir a negar novamente; é, mais, a humildade de reconhecer que sem Jesus não conseguirá caminhar. Por isso, Jesus diz-lhe: “segue-Me”.
Ao celebrarmos as exéquias, celebramos a fé na ressurreição dos mortos, quer dizer, que a morte física não tem a última palavra e já foi vencida pela glorificação de Cristo. Ao mesmo tempo, somos convidados a “morrer” para tudo o que não é vida e prejudica a nossa vida. Amar também é isso: afirmar a qualquer irmão ou irmã: eu não quero que tu morras!
Como de Pedro que O negou, Jesus conseguiu ─ após esta declaração de amizade e de amor ─ fazer dele um construtor de pontes, assim também Jesus poderá fazer de nós grandes coisas, mesmo a partir do nosso amor frágil. Pedro foi tornado apto por Jesus Cristo para ser o Pontífice, porque foi o mais incapaz. Pedro desceu ao mais fundo do seu nada para poder apreciar a centelha de uma graça assombrosa que foi a missão que Jesus lhe entregou de nos encaminhar para a vida eterna.
Somos convidados a renovar o nosso amor a Jesus, que tem presentes em Si todos aqueles que partiram para a casa do seu e nosso Pai. E renovar o nosso amor por Ele implica renovarmos o nosso ardor missionário. Quem acolhe a graça de Deus gratuitamente é chamado a compartilhar os seus dons também graciosamente com os outros, no dia-a-dia. Não são as nossas fragilidades e pecados que serão capazes de limitar a oferta da graça de Deus; será mais a nossa indiferença à Sua misericórdia infinita.
Consagrados na verdade levando a Palavra de Deus à prática no quotidiano
Jo 17, 11b-19
“Esperança para a terra. Esperança para a humanidade.” ─ É o lema da Semana Laudato Si’ que a Igreja está a viver, coincidente com esta novena do Espírito Santo que celebramos entre a Assunção de Jesus e o Pentecostes. A Encíclica Laudato Si’ inspira-nos a um protagonismo que parte de uma espiritualidade ecológica inspiradora de um estilo de vida que se torna profecia, na qual as nossas vidas ajudam a denunciar tudo aquilo que prejudica não só a terra em que vivemos, mas também a humanidade de hoje e de amanhã. Esta profecia não é um conjunto de teorias, mas de boas práticas nas quais nos damos conta de que a esperança para a terra e a esperança para a humanidade são a mesma Esperança vivida e proposta por Jesus aos seus discípulos. Não é invenção de hoje, é herança do que Jesus viveu e nos deixou como missão!
Esta esperança tem o seu ponto mais alto na oração sacerdotal de Jesus, onde Ele pede ao Pai que sejamos um como Ele e o Pai são um só, tendo a plenitude da alegria de Jesus em nós mesmos. É a santidade que se traduz em unidade e plenitude. A verdade é a Palavra de Deus, pela qual Jesus pede ao Pai que consagre as nossas vidas. Por isso, Jesus não pede ao Pai que nos tire do mundo, mas que nos livre do mal. É esta a missão dos discípulos-missionários de Jesus: anunciar no e ao mundo a libertação do mal que permite vivermos unidos no Amor de Deus. Esta consagração na Palavra de Jesus implica ações concretas, nomeadamente um estilo de vida com o qual possamos dar testemunho da verdade. Não é da ordem do dizer, embora possamos exortar os outros, mas é mais da ordem do fazer.
Não é só pelos lábios que se fala.
P. João António Pinheiro Teixeira
Não é só pelos olhos que se vê.
Não é só pelos ouvidos que se ouve.
As palavras mais sábias são as que brotam da vida.
As imagens mais fortes são as que se fixam na alma.
As lições mais importantes são as que entram pelo coração.
Hoje, 24 de maio, com os nossos irmãos jesuítas celebramos a memória de Nossa Senhora da Estrada ou do Caminho, recordando uma pequena capela muito humilde em Roma que teve de ser aumentada por causa da grande afluência de fiéis que ali iam a escutar a Palavra e a ser atendidas em direção espiritual e a na confissão. E com os nossos irmãos salesianos, rezamos a Maria Auxiliadora, companheira dos nossos caminhos missionários, auxílio dos necessitados de ternura, de compreensão e de amor.
O Papa João Paulo II afirmou em 2002 que o Rosário da Virgem Maria foi-se formando gradualmente ao longo dos tempos com o sopro do Espírito Santo. É uma oração simples e ao mesmo tempo profunda que ajuda os fiéis a produzir frutos de santidade. Uma vez que nos ajuda a assimilar os mistérios da vida de Cristo sob o fundo “musical” das avé-marias. Neste sentido, o Rosário também é uma forma de celebração ou proclamação da Palavra, através do qual a Nossa Senhora ajuda a gerar Cristo em nós.
Diz são João Paulo II que esta oração
enquadra-se perfeitamente no caminho espiritual de um cristianismo que, passados dois mil anos, nada perdeu da sua frescura original, e sente-se impulsionado pelo Espírito de Deus a “fazer-se ao largo” para reafirmar, melhor “gritar” Cristo ao mundo como Senhor e Salvador, como “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6), como “o fim da história humana, o ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização” (GS 45).
Queiramos ser como Maria: tenhamos pressa em comunicar o Amor. Como Ela, levantemo-nos com prontidão e não tenhamos medo do êxodo interior que precisamos de empreender todos os dias para ir ao encontro dos outros. A união para com os irmãos concretiza a união com Deus, pela qual Jesus pede ao Pai no Espírito Santo. Não há união com Deus sem união com os outros no caminho, através de palavras sinceras e, sobretudo, gestos de caridade. Não há receitas para isso, nem uma lista geral de afazeres: é preciso olhar a realidade da vida e ver nela os salpicos da Luz de Deus a indicar-nos a possibilidade de uma boa ação ou de uma atitude. A glória de Deus, assim, manifestar-se-á nas ações que fizermos por sua inspiração. Em silêncio, cada um de nós reflita sobre os passos que precisa de dar ou renovar para caminhar nesta direção que o Evangelho de Jesus nos indica. Tenhamos a certeza de ter Nossa Senhora por protetora e guia.
O fundamento da nossa fé não é uma segurança pessoal, mas a confiança em Deus, seja em que situação for
At 19, 1-8; Jo 16, 29-33
Ao longo do 4º Evangelho, Jesus quase sempre se depara com um eco de incompreensão, em relação às suas afirmações. No episódio de hoje, em relação ao que Jesus tem dito acerca da sua partida, é diferente: os discípulos acabam por compreender. No entanto, mesmo assim, o discurso deles parece-se com o de uma espécie de comissão parlamentar independente: dá a impressão que O estão a interrogar, justificando a sua fé a partir do facto de Ele falar sem enigmas, ao ponto de os discípulos já não terem mais perguntas para Lhe fazer.
Jesus aproveita o momento para lhes anunciar uma “hora” em que eles serão dispersos e O deixarão só. Nesta ocasião, Jesus aproveita para lhes anunciar que o fundamento de tudo o que diz e faz e, portanto, da paz que Ele transmite está na presença do Pai n’Ele. Por isso, pede-lhes confiança, uma vez que Ele venceu o mundo.
Podemos concluir, também, que é à Luz da Ressurreição e do Espírito Santo que Jesus prometeu que se pode entender esta fé do Enviado do Pai e a aceitação de todos os riscos que a mesma fé implica, uma vez que a certeza só a Palavra de Deus pode dar. Acreditar assim, sem reservas em relação ao poder de Deus, é como se a fé não deixasse que algum hiato ─ mesmo a experiência da morte ─ pudesse dificultar o vislumbra da vida eterna a partir da experiência terrena, diante da promessa de um futuro feliz.
Não basta uma vivência da fé meramente apoiada em ideias claras; é preciso estar com Jesus na hora dura de sofrimento. Quantas vezes deitamos a perder convicções só por falta de presença onde Jesus hoje está: na Palavra, nos Sacramentos, na Comunidade, no Pobre, no Doente, no Marginalizado, etc. À clareza intelectual da fé unamos a evidência física do amor.
O encontro do discípulo com o Ressuscitado “dá à luz” uma alegria que ninguém pode “abortar”. Mas para ser missionário tem de “votar” publicamente n’Ele
At 18, 9-18; Jo 16, 20-23a
A vida humana ─ e dentro dela a vida cristã ─ faz-nos experimentar momentos de uma dramática tristeza, mas também nos poderá proporcionar momentos de profunda alegria. Temos vindo descobrir nestes dias pela escuta da Palavra que, mais do que as perguntas que gostaríamos de ver respondidas, ou seja, mais do que a compreensão rápida das Palavras de Jesus, vale mais optarmos por uma rápida e destemida relação ─ no aqui e agora ─, como quem aceita agarrar a mão que o próprio Jesus estende ao nosso encontro, quando parece que nos estamos a afundar no “vale de lágrimas”, como Pedro no alto mar (cf. Mt 14,22-36).
No meu modo destemido de ver, essa “Mão” que, hoje em dia, o Ressuscitado nos estende é o Espírito Santo, o Consolador (pelo Amor/amizade) e o Defensor (pela Verdade).
Um verdadeiro discípulo-missionário de Jesus Cristo não passa rasteiras, mas caminha rasteiro ─ e não altivo ─ começando a sua missão por baixo ─ como Paulo que tinha a mesma profissão de Áquila (cf. At 18,1-8), abraçando exclusivamente a pregação quando foi possível haver mais colaboradores. Dá-me a impressão que hoje acontece com os pastores um pouco ao contrário: somos proporcionalmente mais colaboradores do que no tempo de Paulo e há entre nós e quem exerce profissões civis um fosso frequentado por muitos servidores não reconhecidos como ministérios instituídos. A sacralização dos ministérios levou a que se veja muitas vezes uma profissão civil como disparidade de culto.
Não parar de pregar, não obstante as adversidades, é uma missão para poucos ─ implica votos daqueles de “rapar a cabeça” como Paulo fez em Cêncreas, mesmo com sinais contracorrente (canónica incluída!). Responder ao convite de Jesus «Não temas, continua a falar…» implica, por vezes, um sinal externo como aquele da Radiofonia a dizer “no ar”, quando se está em direto.
Não basta falar “à boca cheia” (coisa que também acontece tendencial e gradualmente nas redes sociais), mas ter conhecimento de causa, como se costuma dizer, para que a “bota bata com a perdigota” nas coisas que dão sentido à vida. Enfim, é preciso estar dentro do mundo, embora como seguidores tendo consciência que não somos do mundo. A este respeito, faltam-nos muito o contacto físico com a realidade e os trabalhos manuais, que a certa altura de evolução nos pareceram uma falta de tempo em relação à tendência do digital, como complementaridade a esta tendência um pouco subversiva no que toca aos relacionamentos humanos diretos.
Abro aqui um parêntesis para jogar com as palavras, com o que elas nos dizem por si próprias, no seu sentido denotativo: “digital” vem de dígitos, sendo que os que estão na base das comunicações são o 1 (um) e o 0 (zero) que, combinados de certa forma, produzem uma imagem, um texto ou um som, enfim, o audiovisual que se traduz na comunicação on-line. Já o “analógico” é relativo a analogia, implicando uma “relação de semelhança entre objetos diferentes, quer por motivo de semelhança, quer por motivo de dependência causal”. Embora o que é analógico não envolva, à primeira vista, a tecnologia digital, é mais útil à criação de um ambiente que permita a busca de relações sadias, porque nos permitem melhor passar de de uma perceção de progresso técnico a uma vontade de progresso nas relações humanas, assim como de uma mentalidade do desenvolvimento à atitude de envolvimento, de um sucesso frenético à verdadeira alegria, da ganância à gratuidade, em suma: da perceção e fundamentação da vida ex maquina a uma convicção de existirmos ex Deus.
A pastoral da Igreja, neste sentido, precisa de se parecer ainda mais com a carpintaria, com a agricultura e a pesca, uma vez que foi por aí que o Senhor Jesus começou a lidar com o mundo e as pessoas, aproveitando-se analogicamente destas realidades humanas para nos desvelar o sentido da vida em termos vocacionais e salvíficos.
Como sugere FABRICE HADJADJ, em Ressurreição, Manual de Instruções (Editorial A.O.), a agricultura gera o ambiente que permite a arte lenta da escuta, enquanto que a pesca gera a interação que permite a existência de anunciadores (cf. pp. 134-147).