Ser protagonistas no Espírito Santo é descobrir a Verdade escondida por detrás das Palavras de Jesus impressas no nosso coração crente

At 16, 22-34; Jo 16, 5-11

Ponhamo-nos na pele dos discípulos de Jesus, a quem Ele fala de perseguições e anuncia a sua partida para o Pai. Não nos surpreenderá o seu sentimento humano de tristeza. Se aqueles discípulos estivessem aqui no Seminário, poderíamos vê-los na ponte entre a etapa da configuração e a de síntese vocacional, já fora da comunidade do Seminário. Que é o mesmo que dizer entre o desejo do protagonismo, porque conscientes dos valores do Mestre, e o medo da responsabilidade na ausência aparente do Mestre.

Pode acontecer, eventualmente, nos candidatos ao presbiterado que estão já fora do Seminário, na denominada etapa da síntese vocacional (cf. Ratio Fundamentalis Istitutionis Sacerdotalis, nn. 74-79), que vivem este transe entre o querer estar sozinhos numa ação pastoral, sentindo-se protagonistas de uma ação concreta sem a vigilância direta dos atuais formadores, e, por causa do cansaço ou da dureza da missão, o medo do desacompanhamento direto dos mesmos formadores. Ouvi alguém dizer (e penso com razão) que a autoridade delega-se, mas a responsabilidade não. Parece-me que o desejo do protagonismo no seu sentido denotativo ─ destaque pessoal, distinção ─ pode perder o seu fervor quando se vivencia o seu sentido figurativo que é a qualidade de ter iniciativa (cf. dicionário). O Evangelho dá-nos a impressão de que Jesus está a espicaçar a iniciativa dos discípulos, no «nenhum de vós Me pergunta: “para onde vais?”». O núcleo da questão que aqui quero refletir é a diferença entre o estarmos e o sentirmo-nos sozinhos ou acompanhados real e não só aparentemente.

Para aqueles que estão prestes a ser protagonistas como Apóstolos a partir do Pentecostes, a pedagogia de Jesus é clara, dentro da Verdade que anuncia: conforta os seus discípulos, no momento em que começa a pôr “a faca e o queijo” nas suas mãos. Para que lhes possa delegar a sua Autoridade ─ no Espírito da Verdade ─ eles são chamados a uma responsabilidade: a da coragem de viver sob essa mesma verdade, como alegres testemunhas. O episódio que hoje proclamamos dos Atos dos Apóstolos é a prova real de que é possível não ter medo de exercer um protagonismo pessoal dentro de circunstâncias adversas e, ao mesmo tempo e a confirmar a presensa do Espírito de Jesus, contemplar o protagonista principal que Cristo lhes deixou, o próprio Espírito Santo que consola e defende. Hoje celebra-se o Dia Internacional do Viver Juntos em Paz; vejamos como pode estrebuchar a paz de dentro de uma prisão! Este é um dos sinais de uma madura síntese vocacional em ato presente concretamente em Paulo e Silas.

69. Não se pode esquecer, finalmente, que o próprio candidato ao sacerdócio deve ser considerado protagonista necessário e insubstituível na sua formação: toda e qualquer formação, naturalmente incluindo a sacerdotal, é no fim de contas uma auto-formação. Ninguém, de facto, nos pode substituir na liberdade responsável que temos como pessoas individuais.

Certamente também o futuro sacerdote, e ele antes de mais ninguém, deve crescer na consciência de que o protagonista por antonomásia da sua formação é o Espírito Santo que, com o dom do coração novo, configura e assimila a Jesus Cristo Bom Pastor: nesse sentido, o candidato afirmará a sua liberdade da maneira mais radical, ao acolher a acção formadora do Espírito. Mas acolher esta acção significa também, da parte do candidato ao sacerdócio, acolher as “mediações” humanas de que o Espírito se serve. Por isso mesmo, a acção dos vários educadores só se revela verdadeira e plenamente eficaz se o futuro sacerdote lhe oferece a sua pessoal, convicta e cordial colaboração.

JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-sinodal “Pastores DAbo Vobis”, n. 69.

«Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas». Amar a Deus traz sempre benefícios colaterais para todos

Dt 4, 1. 5-9; Mt 5, 17-19

Ao ser entregue o Evangeliário, é dito ao que vai receber o primeiro grau do Sacramento da Ordem: «Recebe o Evangelho de Cristo, que tens missão de proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas» (Pontifical Romano). Estas palavras consideram-se um verdadeiro projeto de santificação pessoal, voltado sobretudo para o bem dos que é chamado a servir. Por isso, guardar o mistério da fé, proclamado por palavras e obras, exige um contínuo estudo orante da Sagrada Escritura, onde se descobre a vontade de Deus e a revelação do mistério de Deus e do homem (cf. CEP, O Diácono Permanente na Igreja em Portugal ─ 5º A dimensão da diaconia na espiritualidade cristã, p. 44).

É assim que podemos entender as palavras de Jesus no Evangelho, acerca da “mais pequena letra ou o mais pequeno sinal”: deixar docilmente que, com a leitura orante da Bíblia, cada pequena letra e cada pequeno sinal construa o nosso ser, por Cristo, em direção ao Pai, no Espírito Santo. Ao completar a Lei, Jesus completa-nos a nós, se aceitarmos que o que está escrito é capaz de nos ajudar a superar as nossas fraquezas diante do projeto que Deus tem para a nossa humanidade. Assim, praticando e ensinando, viremos a ser grandes no Reino dos Céus. É, assim, pela positiva: vir a ser grande no Reino de Deus!!

O Senhor “plantou-nos” nesta terra para crescermos e não para diminuirmos. E a forma que tem de nos ajudar a crescer é “regar-nos” todos os dias com a água viva que jorra da Sagrada Escritura. E a rega com gotas pequenas é o contraste de um dilúvio. E em tempo de seca, almejamos que nenhuma gota se perca ou regresse aos céus em vão. Também o povo de Israel foi assim acompanhado no caminho para a terra prometida e para chagar a ela: dando-se-lhe a conhecer os preceitos a praticar para que tal acontecesse. Portanto, “tomar posse” da terra prometida, doravante, implica levar a sério os preceitos do Senhor. Este não tira nada, mas dá-Se todo e dá tudo.

Se, porventura, dando voz ao bel prazer momentâneo ou circunstancial, cada um se pusesse a omitir partes da verdade que salva, quando precisa, a rede que cremos servir de meio de salvação estaria rota, deitando a perder a pesca milagrosa.

Quando, em alguma crise na vida ou no serviço de um padre, se pergunta o que fazer, a melhor resposta ainda é: aceitando com humildade as limitações pessoais e, ao mesmo tempo, as exigências da vida e do ministério presbiteral, uma vez que as mesmas estão sugeridas pela experiência da Igreja, à luz do Evangelho e da Tradição, para que a vocação sacerdotal leve o padre a bom porto, com entusiasmo (= ter Deus dentro) tendo em vista a eficácia apostólica. A psicologia positiva concorda com isto quando ensina que o bom comportamento (apoiado nos valores) ajuda a curar e a ser. Por isso, o amor a Deus não pode ser um mero sentimento, mas um comportamento conforme com vontade divina. Daqui virão benefícios colaterais para quem assim se comporta e para aqueles a quem servimos, na reciprocidade de dons (sendo, por vezes, os destinatários do nosso serviço que nos dão mais do que aquilo que realmente lhes fazemos).

O mesmo se diga quando um padre toma posse de uma ou mais paróquias e/ou serviços eclesiais: a partir do seu serviço, Jesus quer completar tudo em todos. Por isso, é tão importante respeitar a profundidade da lei, como a amplitude dos seus destinatários, não se poupando a esforços para que a Palavra e os seus dinamismos salvíficos cheguem ao maior número possível. Isto exige que não só se viva intensamente o dia da tomada de posse e os ritos que a formalizam, mas o dia-a-dia da pastoral em escuta, discernimento e missão sinodais.

“O Evangelho é poder de Deus para todo aquele que crê” (Rm 1,16) (…) Jesus não deve estar no pano de fundo, mas no coração de todo anúncio. O mundo secular faz de tudo (e infelizmente consegue!) para manter o nome de Jesus longe, ou silenciado, em todo discurso sobre a Igreja. Nós devemos fazer de tudo para mantê-lo sempre presente. Não para nos refugiarmos atrás Dele, mas porque é Ele a força e a vida da Igreja.

Segunda pregação da Quaresma do card. Raniero Cantalamessa, na presença do Papa Francisco

O “magis” pascal que dá sentido ao caminho quaresmal é a síntese entre o verdadeiro saber, o coerente fazer e o honesto sentir

Jr 18, 18-20; Mt 20, 17-28

Vamos subir a Jerusalém e o Filho do homem vai ser entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que O condenarão à morte e O entregarão aos gentios, para ser por eles escarnecido, açoitado e crucificado. Mas*, ao terceiro dia, Ele ressuscitará.

Ao fazer a lectio divina deste texto, o meu olhar decalcou em primeiro lugar a relação aparentemente desproporcionada entre o empreendedorismo litúrgico dedicado ao caminho quaresmal e ao fluir quase líquido do tempo pascal. Mas é só um pensar aparente, pois, na verdade, a Páscoa, na pastoral da Igreja, apresenta-nos, «em saída», na Liturgia da Vida, várias propostas de “ressurreição” pessoal e comunitária, como são os exemplos das Semanas das Vocações e da Vida, entre muitos outros.

Nestes dois versículos está o sumário do anúncio derradeiro da Paixão-Morte-Ressurreição que constitui o kérigma pascal. Síntese vocacional de todos os que se colocam a seguir Cristo de forma radical, até às últimas consequências.

Porém, se o evangelista nos relata o querer desviado dos discípulos, incluindo a mãe dos filhos de Zebedeu, é porque existe a probabilidade de aquela radicalidade não ser real, mas aparente.

É neste contexto que Alessandro Manenti (Vocazione, Psicologia e Grazia. Prospettive di integrazione, EDB, Bologna 20066, 79-84) ousa apresentar os meios da formação, diferenciando-os como primários e assessórios, no seguimento de Jesus Cristo:

MEIOS PRIMÁRIOS ─ Meios que por natureza ajudam diretamente a alcançar o objetivo da formação, interiorizando os valores da sequela de Cristo e da união com Deus, através de duas forças: adquirir os ideais livres e objetivos que sejam fonte de confronto contínuo (maturidade vocacional); e conhecer-se nas próprias resistências a viver os ideais (maturidade psicológica). Ei-los:

1) Discipulado

2) Ideais claros

3) Radicalidade, mas em factos

4) Ser autênticos

MEIOS ACESSÓRIOS ─ que podem beneficiar colateralmente os meios primários:

1) Experiências, mas com cuidado quanto ao horizonte/meta

2) Dinâmicas de grupo, se bem programadas e avaliadas

3) Discernimento, sobretudo pessoal


Como reflete Tomás Halik, na sua Introdução espiritual à Assembleia sinodal da continente europeu, em Praga,

Só Jesus pode dizer: Eu sou a verdade. E ao mesmo tempo diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Uma verdade que não fosse viva e não fosse caminho seria como uma ideologia, uma mera teoria. A ortodoxia deve ser combinada com a ortopraxis, a ação correta. E não devemos esquecer a terceira e mais profunda dimensão, a de viver na verdade. Esta é a ortopatia, paixão reta, desejo, experiência interior ─ espiritualidade. Sobretudo, é através da espiritualidade ─ a experiência dos crentes individuais e do conjunto da Igreja ─ que o Espírito gradualmente nos introduz na totalidade da verdade. As três, ortodoxia, ortopraxis e ortopatia, necessitam-se reciprocamente. Ainda que a ortodoxia (ideias corretas) possa ser intelectualmente atrativa, sem a ortopraxis (ação correta) é ineficaz e sem a ortopatia (sentimento correto), é fria, imatura e superficial.

Introdução espiritual à Assembleia

A averiguação da sincronia entre ortodoxia, ortopráxis e ortopatia pode ser uma boa forma de os educadores na fé, os formadores na vocação e os agentes pastorais em geral verificarem se os meios acessórios com os quais gastamos a maior parte do nosso tempo pedagógico chegam a pôr em ação os meios primários do seguimento de Jesus, como se de uma tabela se tratasse:

OrtopatiaOrtopráxisOrtodoxia
Discipulado???
Ideais claros???
Radicalidade em factos???
Autenticidade???

* No Latim, “mas” diz-se “magis” (cf. Infopédia). Por vezes, num caminho libertador, podemos correr o risco de nos contentar-nos com o “menos”, desviando-nos do propósito inicial. Foi o que aconteceu com o povo hebreu no deserto, querendo desistir por causa da fome das coisas terrenas, esquecendo-se da terra prometida (onde corria leite e mel) e querendo voltar para o Egito, comendo a carne e o pão dos escravos: Toda a comunidade dos filhos de Israel começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão. Disseram-lhes os filhos de Israel: «Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egipto, quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne e comíamos pão até nos saciarmos. Trouxestes-nos a este deserto, para deixar morrer à fome toda esta multidão»(Êxodo 16, 1-18. 35).

No caminho quaresmal, devemos atende sempre ao mais que é a promessa da Ressurreição, não nos deixando escandalizar pelo sacrifício (sacrum facere, fazer sacro que é acabar com o mal) a que nos implica o caminho.

“Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho” é apanágio (privilégio) da fidelidade criativa e do realismo esperançoso do Cristianismo

At 13, 46-49; Sl 116 (117), 1. 2; Lc 10, 1-9 ─ Na Festa dos Santos Cirilo e Metódio, copatronos da Europa

Já no século IX se viveu na missão da Igreja uma das tensões generativas hoje levadas a sério no discernimento sinodal que está presente hoje concretamente na Europa: a adequação das linguagens da comunicabilidade da fé à compreensão dos contemporâneos de diferentes culturas. Dentro da Doutrina Social da Igreja prefere-se falar da conceção analógica do ser do que da sua alternativa conceção unívoca. Esta deita por terra qualquer possibilidade de traduzir a mesma verdade em diferentes línguas para que chegue a um maior número, como é atributo do acontecimento do Pentecostes.

Os irmãos Cirilo e Metódio fizeram com os eslavos o que Tolkien fez com a comunidade pós-guerra: a criação de um alfabeto para transmitir os valores do Evangelho, de forma a que os mesmos fossem compreensíveis pela humanidade num determinado contexto. Apesar de aqueles dois irmãos terem traduzido o Evangelho e os textos litúrgicos (já naquele século!), foram considerados heréticos por não celebrarem Missa em latim, problema ultrapassado pelo Papa Adriano II, que lhes deu razão. O Apóstolo Paulo sofreu alto de parecido com a tradução para grego popular na evangelização dos gentios. Paulo dominava o chamado code-switching, isto é, passava de um a outro registo linguístico para evangelizar a um maior número. E os escritos dos cristãos C.S. Lewis e Tolkien valorizados com a linguagem do cinema! Portanto, uma linguagem inclusiva no caminho da verdade. Jesus já a utilizava, tendo várias formas de se expressar consoante o seu público (a todos em parábolas, em particular com explicações e exortações, etc.). É pena que as invejas geradas nestas tensões gerem equívocos que são veneno para a própria evangelização, que fizeram os santos Cirilo e Metódio sofrer uma forma de “martírio branco” (cf. Liturgia das Horas).

O Evangelho que Jesus convida a anunciar é o Evangelho da Paz. E todos somos poucos para o anunciar. E a primeira condição para que ele possa ser acolhido é haver “gente de paz”, quer dizer, pessoas com a predisposição para caminharem à luz dessa Paz enviada por Cristo. Depois, o método é “mais de Deus e menos de mim”. Não nos devemos perder em preciosismos e perfeccionismos que geram ansiedade (= traços insanos de personalidade ou tendências involuntárias que nos levam a comportar-nos ou a reagir de modo desproporcionado e que nos fazem dano a nós e aos outros), se quisermos ser anunciadores do Evangelho. É preciso curar e dizer que o Reino de Deus está perto!

Como aprendemos em Doutrina Social da Igreja, professamos a possibilidade de que ninguém seja excluído do anúncio da verdade que edifica e dignifica o ser humano. Como os gentios se encheram de alegria, glorificando a Palavra do Senhor proclamada pelo Apóstolo Paulo, que muitos homens e mulheres do nosso tempo possam ter acesso à verdade do Evangelho traduzida pela nossa maneira de viver que, como alguém dizia, para algumas pessoas será única forma a que lhe terão acesso. Não falar de forma a que as pessoas entendam é uma das sub-reptícias formas de indiferença e não há nada mais caro do que aquilo que somos chamados a facultar de graça.

Uma das formas de abuso de poder pode ser possuir a sabedoria e delimitar o caminho da mesma a um mínimo número de pessoas, codificando essa sabedoria para tirar proveito dela mais tarde. Fakenews não são só a veiculação de mentiras, mas também o encobrimento das verdades. Formas de desinformação que atrasam o desenvolvimento humano e as ações de amor que necessitam de ser praticadas em favor da sua dignidade. Se o nosso trabalho não tiver em vista o bem integral da pessoa e estiver mais preocupado pela defesa da instituição, acontecem as deepfakes, formas ainda mais graves e subliminares de controle religioso e social.

Anselm Grün, em “Poder, Uma força sedutora“, elencando como fontes a matéria, a origem, a maioria, o conhecimento, os sentimentos, a função, os contactos, as convicções, e os locais casa, mercado, castelo e templo, avisa-nos que tudo pode ser utilizado para convencer e levar a uma vida saudável ou, então, ser exercidos como poder que assusta as pessoas. A questão do poder, portanto, não se trata de saber se há poder ou não, mas como é que ele é exercido desde aquelas fontes e naquelas áreas da vida humana. Do ponto de vista pastoral, nunca se abusará do poder se se escutarem as pessoas e se for ao encontro da satisfação das suas necessidades mais básicas de humanização. Tudo o que for contra este alicerce será um abuso.

Numa das etapas da história da formação presbiteral encontramos uma tendência intitulada por Amedeo Cencini de “módulo único”, ou seja, o facto de um sacerdote se especializar numa determinada área da pastoral e defendê-la como absoluta, o que gera fragmentações da integralidade do que é ou deve ser a vida cristã. Não obstante o valor da especialização numa determinada área, que ajuda a aprofundar e a levar dons à prática, a falta de correspondência com as outras áreas pode levar à fragmentação do povo de Deus que se é chamado a servir como um corpo. A situação de um dom vivido numa tentativa obsessiva de profundidade, sem relação com Quem o doa na perspetiva da rentabilização em favor dos outros pode ser também considerada uma deepfake. Quem transporta boas notícias não deve ter medo de as traduzir no maior número de línguas possível, tendo, para isso, de pedir ajuda a colaboradores que traduzam.

Hoje celebra-se, a nível social, o Dia Internacional da Doação de Livros. Penso ser esta uma forma de ajudar as outras pessoas a fazer caminho para a verdade: oferecer livros bons, sobretudo que nos tenham feito crescer a quem os oferece.

Os mandamentos do Senhor são sempre co-mandamentos. Realizar na perfeição a vontade de Deus neste mundo implica abrir a ferida, curar e soturar

Sir 15, 16-21 (15-20); 1Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37VI Domingo do Tempo Comum (A)

Se soubéssemos o dom de Deus que está na “árvore da vida”, da qual não foi nem é proibido saciarmo-nos ─ a Palavra de Deus, os Sacramentos e a Caridade ─ não faríamos do caminho da fé uma “religião de leis”. A causa desta tendência é o facto de teimarmos em ficarmos especados a olhar para a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Muito embora o Cristianismo tenha nascido no seio do Judaísmo, a vida em Cristo é uma proposta e uma tentativa de resolução do debate entre a autoridade divina de Jesus ─ gestão da Graça ─ e a dependência na obsessão do mérito pessoal ─ gestão do cumprimento de leis. São Paulo empenhou-se na gestão deste debate até ao fundo.

Não é que não deva haver uma declaração de fronteiras, sobretudo aquelas para além das quais a vida humana se perde, delimitando o ambiente em que se recebe e protege a vida. Quem não viu o filme animado do Rei Leão, em que o pequeno Simba pergunta ao Mufassa seu pai, que zona escura é aquela nos confins do seu reino? O rei da selva rapidamente recomenda ao filho herdeiro que não deve invadir aquele espaço, por causa do risco de perder a vida. E o fruto proibido é sempre o mais apetecido, pois o seu tio ressentido acaba por servir de “serpente” ao seu sobrinho, entusiasmando a desobedecer ao pai, que acaba por morrer ao salvá-lo. Está claro que é preciso haver fronteiras.

Infelizmente, com a colocação obsessiva da atenção na religião como mero cumprimentos de leis ou proibições, esquecemo-nos de dar atenção ─ a mais proveitosa, positiva e importante ─ em como habitar o espaço de onde se recebe e desenvolve a vida e a saúde física, psicológica e espiritual. Como habitar criativamente a vida, como criaturas?

O caminho é “abusarmos” em comer o fruto da árvore da vida, do qual Deus não nos proibiu de comer. É Jesus, na sua Palavra, nos Sacramentos e na Caridade. Deixar de visitar tanto a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, do qual Deus nos proibiu de comer, porque só Ele é Deus.

Este é o cerne do confronto entre Jesus e os escribas. Estes estavam sempre a apontar para as leis, mesmo que delas não dessem exemplo. Jesus estava sempre a apontar para o Pai. Os escribas ignoravam que a vocação humana é um caminho de diálogo entre duas autoridades ─ a sabedoria do amor Deus e a vontade da liberdade humana ─ a partir das coisas pequenas e concretas da vida no confronto com os outros. Os mandamentos do Senhor são co-mandamentos (como sugere o inglês commandments). O que Ele manda, Ele vive, acompanhando-nos no crescimento para aonde nos quer levar.

Tudo o que fazemos seja para que Se manifeste Jesus, que nos banha com o Espírito Santo e nos chama a viver o amor em CSS

Is 49, 3. 5-6; 1Cor 1, 1-3; Jo 1, 29-34 ─ no II Domingo do Tempo Comum (A); reflexão inspirada em Jose Antonio Pagola e em Comentário à liturgia do 2.º Domingo do Tempo Comum – Ano A

(Faço aqui um parêntesis informático performativo para informáticos:)
Uma das coisas mais interessantes que aprendi ao fabricar páginas na Internet ─ antigamente a partir da linguagem html/php e hoje a partir de plataformas open source/sistemas de gestão de conteúdos (CMS) que nos facilitam muito a vida na arte de comunicar pastoral on-line ─ foi a possibilidade de lidar com “folhas de estilo em cascata” (CSS ou Cascade Style Sheets). A sua função, ainda hoje muito importante, é a de criarmos uma folha fácil de carregar onde possam estar escritas todas as programações de estilo que poderão ser chamadas em qualquer página do sistema, quando o programador bem entender. Esta forma de comunicar permite não tornar pesado um sítio da Internet e de ter as coordenadas de estilo sempre à mão. Diante deste episódio do Batismo de Jesus, penso na partilha do Espírito Santo, do Pai para o Filho Unigénito e para nós, como uma “fonte de amor em cascata”: desde então, há uma forma de ser que pode ser acoplada ao mesmo Espírito segundo o Qual Jesus fala e atua. Podemos ver numa única folha de estilos para o governo da estética de um website como o único Espírito com que Deus Pai governa o mundo a partir de Jesus Cristo. Podemos ver isso de forma nítida em 1Cor 12,4-7: Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum.

No Evangelho de hoje recebemos o testemunho de João acerca do Batismo de Jesus no Rio Jordão, no início da Sua vida pública (descrito em Lc 3,21-22, em Mc 1,9-11 e em Mt 3,13-17 de maneira mais pormenorizada).

Logo após as celebrações do Natal, temos neste II Domingo do Tempo Comum a oportunidade para colher a identidade e missão de Jesus que é apresentado como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. É este o propósito da Encarnação de Jesus: a Paixão, Morte e Ressurreição para nossa salvação. É este o Mistério de Cristo que João Batista anuncia em duas etapas: anuncia a vida, chamando a “preparar o caminho do Senhor” e anuncia o seu percurso até à Páscoa.

Deste que constitui o primeiro dos mistérios luminosos, extraio as seguintes lições:

1 O amor incondicional de Deus manifestado no início da vida pública de Jesus é garantia do amor condicional que é destinado a todo o ser humano. Jesus coloca-se na fila dos pecadores que vão receber o batismo de água de João Batista, mesmo não sendo pecador. Na versão de Mateus Jesus responde ao Batista que “É conveniente que assim cumpramos toda a justiça”, interpretando-se como a “justiça superior” da compaixão ou misericórdia. Portanto, no início da vida pública de Jesus, a voz de Deus informa que o que quer realizar através do seu Filho Unigénito é um plano de amor para toda a humanidade. O amor incondicional de Deus é fonte de autoestima.

2 Neste Evangelho está bem patente a diferença do batismo de água que João administra e o batismo no Espírito que só Jesus é que pode realizar. Na Igreja, estes elementos aparecem unificados numa realidade só: no upgrade, ou seja, na atualização que Jesus fez, ao deixar-Se batizar. Jesus submerge os seus no Espírito Santo. Ele possui a plenitude do Espírito de Deus, podendo comunicar aos seus essa mesma plenitude. A grande novidade do batismo cristão é que Jesus Cristo pode “batizar no Espírito Santo”. Não se trata de um banho externo, mas um banho interior, no qual Jesus nos “empapa” do Espírito Santo para nos transformar o coração. A “pomba” é sinal da unção sobre Jesus, Aquele que vem restaurar os destinos de Israel. Ele traz a força, mas não é como esperavam: não vem impor nada pelo domínio ou manipulação dos outros, mas propor uma nova maneira de viver e de relacionar-se com Deus que parte do amor e da fraternidade universal. O amor incondicional é fonte de vida nova.

3 Ser batizados não é um mero requisito tradicional. Não podemos correr o risco de ficar pelo batismo de água ou de penitência, que o é, mas somos chamados a deixar que Jesus nos implique viver um novo nível de existência cristã, etapa após etapa, através de um estilo em que vivamos mais fiéis a Cristo Jesus. O Espírito de Jesus é o Espírito da Verdade, que nos permite não nos deixarmos enganar por falsas seguranças, dentro da nossa identidade irrenunciável de seguidores de Jesus. Para isso, é preciso abandonar caminhos que nos desviam do Evangelho, de interesses egoístas e do bem-estar que nos faz ser cobardes. O amor incondicional é fonte de liberdade.

4 É o Espírito Santo que transmitido por Jesus que nos permite fazer da fé um processo contínuo de conversão e não um caminho terminado. É o Espírito da conversão, que nos permite deixarmo-nos transformar lentamente por Ele, que nos ensina a vivermos segundo critérios e atitudes que manifestam o coração de Deus na nossa forma de nos relacionarmos com os outros. Os céus que se fecharam pela atitude os nossos primeiros pais, são agora abertos por Jesus, na nova relação que estabelece com o Pai. Deixemo-nos atrair pela novidade criadora deste relação, que pode despertar o que há de melhor no coração de cada um de nós e do interior da Igreja para fora. Pelo Espírito Santo, Jesus vem fazer uma proposta totalmente nova, original, mostrando-nos que valemos por aquilo que nós somos e não por aquilo que podemos dar. É o que se mostrará nos capítulos seguintes no Evangelho segundo João. Jesus é capaz de fazer os sinais manifestados porque Ele é o Messias esperado e enviado do Pai. O amor incondicional é fonte de renovação.

Acompanhamento no discernimento da vocação: o trespasse do testemunho para o encontro com Aquele que anima, forma e envia

1 Jo 3,7-10; Jo 1,35-42

Hoje, João Batista assume o papel de animador vocacional. Depois de várias temporadas de pastoral vocacional na minha diocese, em que cumprimos o propósito de lançar sementes, entre a escuta e o discernimento, na sequência das visitas pastorais do bispo diocesano, esperaria que ficassem nas paróquias e arciprestados pessoas como este grande precursor que, simplesmente (e já não é pouco!) aponta Jesus que passa, incentivando a segui-l’O. Sucessos não são fáceis de constatar, se é que o objetivo da missão cristã é o sucesso aparente!!

Os formadores dos seminários sabem que os jovens que passam pela experiência da formação na comunidade não têm ali morada permanente. Passam os dias e ocupam-se com os métodos formativos num modo semelhante ao de João Batista: o de apontar o dedo para o Bom Pastor a Quem são convidados a seguir e a configurar as suas pessoas. À medida que os anos da formação passam, tem de acontecer este trespasse do testemunho para o verdadeiro encontro, que vai desde uma inicial resposta à pergunta de Jesus «Que procurais?», com a qual se crivam as motivações verdadeiras para a idoneidade vocacional, até ao morar com Ele e como Ele a caminho, por uma síntese vocacional afora e nunca terminada, por entre cidades e aldeias, num acesso gradual à experiência pastoral, cada vez mais animada pela amizade com Cristo e a partir da demora com Ele (no italiano “habitar” é dimorare = “demorar-se”).

Por vezes, analisa-se o convite de Jesus «Vinde ver» meramente como sendo o “apeadeiro” que é o Seminário, como se este fosse o único e o último destino do testemunho de quem diz «Encontrámos o Messias». Sim, é verdade que Jesus muda de tal maneira a vida de alguns que lhes muda o nome, certificando uma expropriação em favor da sua missão. Porém, a comunidade do Seminário ─ como se fosse só “um dia” (que terá as suas réplicas ao longo da formação permanente) ─ dá lugar a um outro trespasse, o fundamental, para que a lógica da vocação cristã funcione: sentir a tensão que existe entre o demorar-se com Jesus e o testemunho aos outros, que tem de ser cada vez qualificado, de modo que outras pessoas possam sentir-se motivados pelo conhecimento que lhes é dado acerca da convivência com Cristo. Sim, tanto mais faz sentido a experiência de uma demora com Cristo numa casa de formação, quanto, na medida do possível e organizável, pudermos fazer a gradual experiência de O anunciar aos que vivem fora.

No meio do testemunho, a palavra ocupa um lugar fundamental, ainda que não o único, uma vez que a coerência das atitudes a certifica ou contradiz. É comummente aceite pela comunidade científica que a palavra falada tem um poder criador. E porque é que o seu uso é de grande importância? Segundo descobertas recentes no campo da neurologia, o centro nervoso da fala no cérebro controla todos os outros nervos do corpo. O que dissermos e a forma como dissermos, irá ajudar ou prejudicar a forma como os outros lidam com o objeto da nossa comunicação. A língua é o menor membro do nosso corpo, mas pode dominar o corpo todo. É curioso que já a antropologia bíblica dizia isto, sem o acesso aos instrumentos de investigação que temos hoje!

João apresentou o «Cordeiro de Deus» a dois, ou seja, apontou par a mansidão de Deus presente em Jesus que é capaz de se compadecer e, inclusivamente, de «tirar os pecados do mundo» (algo inédito e escandaloso naquele tempo…). Como não podia aliciar aqueles dois a irem ter com ele imediatamente? E aqueles dois foram diretos à melhor possibilidade a respeito de Jesus, não só um encontro esporádico, mas “demorar-se” com Ele, naquele dia. E logo aquele encontro se multiplicou, com o testemunho de André a seu irmão Simão que veio a chamar-se Pedro.

A força criadora da palavra, no testemunho, pode ser colocada ao serviço dos propósitos de Deus, por aqueles que se habituaram a privar com Ele: prova disso é a eloquência com que fala João na primeira leitura acerca da semente divina que está naqueles que, não pecando, praticam a justiça do amor aos irmãos. Através do testemunho que damos na relação com os outros (dentro e fora da comunidade formativa), falamos-lhes da relação que temos (ou não) com Deus. Portanto, a história de uma vocação não precisa de muitas palavras, sendo que as que são ditas são essenciais, quer para descrever o encontro de cada um com Cristo, quer para atrair outros a um pessoal encontro com Ele, mediado pelo entusiasmo que é o Espírito de Deus que habita em nós.

   O Verbo de Deus nasceu segundo a carne uma vez por todas. Mas pela sua bondade e condescendência para com os homens, deseja nascer sempre segundo o espírito para aqueles que O procuram, e faz-Se menino que se vai formando neles à medida que crescem as suas virtudes. Ele manifestou-Se em proporção com a capacidade de cada um, capacidade que Ele conhece perfeitamente. E se não Se comunica com toda a sua dignidade e grandeza, não é porque não o deseje, mas porque conhece as limitações das faculdades recetivas de cada um. Assim, o Verbo de Deus revela-Se sempre a nós do modo que nos convém, e contudo ninguém pode conhecê-lo perfeitamente, por causa da grandeza do mistério.    Por isso, o Apóstolo de Deus, considerando a força do mistério, exclama sabiamente: Jesus Cristo ontem e hoje e para sempre, entendendo que se trata de um mistério sempre novo, que nunca envelhece para a compreensão da inteligência humana. (…) A Encarnação divina é um grande mistério e nunca deixará de ser mistério. Como pode o Verbo, que está em pessoa e essencialmente na carne, existir ao mesmo tempo em pessoa e essencialmente no Pai? Como pode o Verbo, totalmente Deus por natureza, fazer-Se totalmente homem por natureza, sem detrimento algum da natureza divina, segundo a qual é Deus, nem da nossa, segundo a qual Se fez homem? Só a fé pode apreender estes mistérios, a fé que é precisamente a substância e o fundamento das realidades que ultrapassam toda a perceção e raciocínio da mente humana.

São Máximo Confessor, abade, Dos “Capítulos”, distribuídos em cinco centúrias

Evangelizar é tanto levar Jesus aos outros como enviar os outros a Jesus, formar tanto quanto reformar

Is 45, 6b-8. 18. 21b-25; Sal 84 (85); Lc 7, 19-23

O Advento do Evangelho não nos mostra muito da relação entre os primos João Batista e Jesus, mas aquilo que mostra é suficiente para nos darmos conta de que é uma cumplicidade e uma distância entre os dois, ao mesmo tempo, fatores que não anulam a sua relação como “dobradiça” entre o antigo e o novo testamentos, antes interagem no comum projeto de Deus que é surpreendentemente formador e reformador da história do seu Povo.

Só os vemos juntos no momento fundante da vida pública de Jesus, no rio Jordão, onde a água serve de eixo à articulação entre duas margens, tanto quanto aquela fila de pessoas que se sujeita ao banho de regeneração. Eloquente é também o da concha, cuja charneira abre as duas partes para a abertura a uma luz nova e à contemplação de sua pérola. Durante um tempo, esta se forma dentro da concha, mas passado um tempo, ela terá de ser aberta, para que o que se formou se dê a mostrar. Por isso, evangelizar terá de ser sempre formar e reformar, ajudando a crescer e mostrar, saindo para fora.

É assim a formação cristã, é assim a formação sacerdotal, é assim toda a educação: ajudar a crescer e enviar. Assim fez João Batista com os seus discípulos: enviou-os a Jesus. O seu intuito não seria só curiosidade, nem somente o “grito de um guerreiro”, mas, também, uma pedagogia sábia: abrir mão dos seus próprios discípulos e proporcionando que eles fizessem um “upgrade” na sua forma e objeto de seguimento. Ouvindo de Jesus a confirmação de que era o Messias esperado, ficariam para sempre ligados a Ele.

É assim que, também, vejo o conceito e vivência da minha incardinação como presbítero na minha diocese e na Igreja, à luz do cânone 265 e à luz do Concílio Vaticano II, entre a formalidade e a mudança de mentalidade: por um lado, uma ligação “umbilical” que me dá estabilidade e segurança enquanto sou útil no serviço (cf. cânones 269 e 281); por outro lado, abrindo portas a uma vivência profética do ministério, colocando-me ao serviço ou nunca me fechado à possibilidade de socorrer às necessidades provenientes da responsabilidade que o meu bispo tem de responder a desafios difíceis dentro e fora da própria Igreja particular. A incardinação é, por isso, espaço de formação e de reforma permanente. Se não o fosse, não se estaria “incardinado”, correndo o risco de ser uma porta que não abre nem fecha, porque desligada de a “charneira” que é a autoridade do bispo.

Hoje, a Liturgia faz-nos contactar com S. João da Cruz. A tendência de “encadernar” a vida dos santos de uma forma uniformizante “capa” a possibilidade de contactarmos com o que na sua história é inédito: o caminho do nada se preciso for (como na sua foi) para chegar à novidade do amor de Deus. E quando se fala de “nada” é mesmo nada: nem o físico nem o espiritual. Às vezes, é assim que se faz a reforma da vida espiritual e da Igreja (e das suas instituições): não fazendo “marcha atrás”, mudando somente o lugar onde se (re)enterram os ossos de um fundador, mas um regresso às fontes, para as reler com novos olhares. Não basta anunciar o amor de Deus aos outros, ainda que com palavras afáveis e ações de beneficência; é preciso ajudar os outros a contactar com o amor de Deus como ele se apresenta na sua originalidade por cada pessoa.

Conforme João Batista, o precursor, enviou os discípulos a perguntar ao Messias se era Ele mesmo que havia de vir ao mundo, hoje, a Igreja precursora, é chamada a ir ao encontro da Igreja missionária averiguar a novidade onde o Messias se vai manifestando na sua novidade. Talvez seja este, também, um dos desafios do Sínodo!

O Justo que pedimos que “chova” através do Salmo 84 (85), quando chove, não é para um funil, mas onde quer que Se se manifeste a sua bondade. Ela atrai-nos de onde quer. Por isso, somos chamados a “ver novas todas as coisas”! (St. Inácio de Loyola).

Evangelizar é ensinar e curar… com mais vontade para frutificar ‘as letras’!

Is 30, 19-21. 23-26; Mt 9, 35 – 10, 1. 6-8Memória de São Francisco Xavier, Padroeiro das Missões

Ai de mim se não evangelizar ─ Bem entendo esta exclamação na boca de Paulo, de São Francisco Xavier e de tantos e tantas, missionários e missionárias ao longo da história, diante do evangelho de hoje, que nos mostra a itinerância imparável, sinodal e universal de Jesus para instaurar ou implantar o Reino de Deus. Na sua ação, conforme nos relata Mateus, entrevê-se um itinerário vocacional daqueles que O acompanham: aos discípulos manda pedir ao Senhor da messe que mande trabalhadores, aos Doze, que Ele chama como hoje os Bispos chamam aqueles que escrutinam para a Ordem, após um tempo significativo de formação, manda realizar atos extraordinários de cura e libertação.

Viemos por povoações de cristãos, que se converteram há uns oito anos. Nestes sítios não vivem portugueses, por a terra ser muitíssimo estéril e extremamente pobre. Os cristãos destes lugares, por não terem quem os instrua na nossa fé, somente sabem dizer que são cristãos. Não têm quem lhes diga Missa e, ainda menos, quem lhes ensine o Credo, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e os Mandamentos. Quando eu chegava a estas povoações, baptizava todas as crianças por baptizar. Desta forma, baptizei uma grande multidão de meninos que não sabiam distinguir a mão direita da esquerda. Ao entrar nos povoados, as crianças não me deixavam rezar o Ofício divino, nem comer, nem dormir, e só queriam que lhes ensinasse algumas orações. Comecei então a saber por que é deles o reino dos Céus.

Carta de S. Francisco Xavier em 1542

O Reino de Deus é de que o quer e busca. Ouvi alguém letrado em Teologia e Pastoral dizer, uma vez, que a tendência atual é querermos preparar bem as pessoas para celebrar os sacramentos e, depois de os termos ganho, tender a não acompanhar. Em vez disso, propunha celebrar com as pessoas que assim o querem de livre e boa vontade os sacramentos e, na continuidade, acompanhar os que os recebem no caminho da vida e da fé. Faz sentido, à luz quer do testemunho de São Francisco Xavier, quer do que aprendemos com Jesus Cristo no Evangelho. Diz-nos a sua história que Xavier se dedicou desde cedo às obras de caridade. Não será este voluntariado (boa vontade) que precisamos como fundamento de uma pastoral vocacional mais promissora, em vez de encontros mais ou menos intelectuais fechados sobre si mesmos? A este respeito, urge entrelaçar as iniciativas que já temos na Igreja e monitorizar se o caminho que se propõe a que adere a ele se constituiu como itinerário vocacional.

Como seria ímpio negar-me a pedido tão santo, comecei pela confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo Credo, Pai-nosso, Ave-Maria, e assim os fui ensinando. Descobri neles grande inteligência. Se houvesse quem os instruísse na fé, tenho por certo que seriam bons cristãos.

Carta de S. Francisco Xavier em 1542

Quanto plantamos uma semente ou uma pequena raiz, não queremos que ali seja imediatamente árvore e fruto. Requer-se tempo, após a sementeira e plantação. Requer-se preparação do terreno, mas se demoramos a semear e plantar, o terreno “foge” da predisposição que possuía para a plantação.

Mas, para o seguimento de Cristo, requer-se acompanhamento, pois

Muitos deixam de se fazer cristãos nestas terras, por não haver quem se ocupe de tão santas obras. Muitas vezes me vem ao pensamento ir aos colégios da Europa, levantando a voz como homem que perdeu o juízo e, principalmente, à Universidade de Paris, falando na Sorbona aos que têm mais letras que vontade para se disporem a frutificar com elas. Quantas almas deixam de ir à glória e vão ao inferno por negligência deles! E, se assim como vão estudando as letras, estudassem a conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá delas e do talento que lhes deu, muitos se moveriam a procurar, por meio dos Exercícios Espirituais, conhecer e sentir dentro de suas almas a vontade divina, conformando-se mais com ela do que com suas próprias afeições, dizendo: «Senhor, eis-me aqui; que quereis que eu faça? Mandai-me para onde quiserdes; e se for preciso, até mesmo para a Índia».

Carta de S. Francisco Xavier em 1542

Não é infrequente, para os que “habitam” as comunidades da Igreja, querer-se ou pedir-se serviços cómodos ou mais vistosos, onde sustentar um protagonismo que dê segurança emocional e reconhecimento que acaba por ser “pago” de alguma forma. Chega a haver, já, bons estudos de psicologia sobre isso, que servem de prevenção e de cura!

Urge a necessidade de discípulos-missionários preparados e animados em ser enviados para as periferias, não só para ensinar, mas também para cuidar, curando as pessoas nas situações mais diminuidoras da dignidade e felicidade humanas. Pelo que se percebe nesta crónica, muitas vezes se “fica pelas palavras e não aponta ações concretas para combater estas ameaças. Como nos diz o Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundial dos Pobres ‘não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através dum envolvimento direto’. Eu por cá [diz o Papa] vou tentar arregaçar as mangas…’.

São Francisco Xavier é um daqueles exemplos em que a prática da caridade e o ensino são partes da mesma entrega e ação missionária, imitando o próprio Cristo.

Ajudar-nos-á a imitar, também, assim a opção de Jesus pelos mais desfavorecidos, voluntariando-nos e envolvendo outros, a partir da intenção de oração neste mês de dezembro: por organizações de voluntariado e de promoção humana que se comprometam pelo bem comum.

Conselhos do Santo do Dia

“Deixar-se afetar por” e “esperar a docilidade de” ─ não há outra forma de sonhar o encontro sempre original do primeiro anúncio de Jesus Cristo

Mt 4, 18-22; Festa de Santo André,

Este mês de novembro, que está a findar, é coroado com a Festa de Santo André, que acaba por dar-lhe o nome de “Mês de Santo André”, aberto pela celebração da Solenidade de Todos os Santos e, em particular, no dia 4, continuado pela celebração da memória de São Carlos Borromeu, padroeiro dos seminaristas, e sequenciado com a vivência da Semana dos Seminários.

Com Santo André destacamos duas dimensões fundamentais da fé, nem sempre lembradas em tempos de indiferença ao mistério cristão, que são (cf. testemunho de D. Manuel Pelino):

1ª ─ O entusiasmo pelo encontro com Cristo (estar com Cristo), experiência que André fez com João Evangelista, ambos discípulos que João Batista apresentou a Jesus, que os convidou a ir com Ele e a ver… Não basta teorias, doutrinas, ritos…, que nem sempre têm ou proporcionam este encontro pessoal com Cristo, como presença amiga.

2ª ─ A notícia do encontro com Cristo, transmitida pelo testemunho pessoal a outros, como André fez com seu irmão Simão. Portanto, a fé é um encontro e a fé leva-nos a conduzir outros até Jesus.

A estas duas dimensões, apoiado pelo Evangelho de hoje, juntaria uma 3ª que é: a sinodalidade do chamamento, tendo em vista a sinodalidade da missão (recordemos o júbilo de Jesus pelo envio dois a dois e o sucesso da missão dos 72 discípulos, no Evangelho de ontem).

Já o Papa Francisco nos garante que

A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quando se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo renasce sem cessar a alegria. (…) Da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído. (…) O bem tende a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e beleza procura, por si mesma, expansão; e qualquer pessoa que vive uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se.

EG n.º 1, 3 e 9

O Cristianismo é o anúncio de que Deus Se fez homem, nascido de uma mulher, num determinado lugar e num determinado tempo. O Mistério que está na raiz de todas as coisas quis dar-se a conhecer ao homem. É um Facto que acontece na história, é a irrupção no tempo e no espaço de uma Presença humana excecional. Deus deu-Se a conhecer revelando-Se, tomando Ele a iniciativa de colocar-Se como fator da experiência humana, num instante decisivo para toda a vida do mundo.

LUIGI GIUSSANI – STEFANO ALBERTO – JAVIER PRADES, Gerar rasto na história do mundo, Paulus, Apelação 2019, 13.

A excecionalidade da presença de Cristo era impressionante, para que aqueles que estavam da sua tarefa de subsistência primária ─ pois eram pescadores ─, de modo que não hesitaram em relativizar essa tarefa em favor do encontro que iria transformar as suas vidas para sempre.

Ainda ontem verificámos que a missão de Jesus é solidária, enviando os 72 discípulos dois a dois e alegrando-Se pelo êxito da missão, à luz do Espírito Santo. Hoje constatamos que Jesus também chama dois a dois para o discipulado, como se entre seguimento e missão não houvesse algum hiato, mas continuidade de um estar com o Mestre e ser enviado, na sequência de diversas etapas do viver cristão.

Há uma simpatia profunda que permeia o encontro daqueles homens que viriam a ser Apóstolos com Jesus ─ e que ultrapassa os laços de sangue ─ construída com a modalidade escolhida por Deus para que se desse o encontro: o acontecimento, não os nossos pensamentos ou criações mentais, sim, um acontecimento feito de vários factos inesperados. O “acontecimento” é diferente de evento (que representa um “vir de”); acontecimento representa sempre “ir a”, de modo que nunca se encontra fechado, mas aberto e solícito (cf. obra citada acima, 25). E o primeiro acontecimento da história é a Criação, a qual se desdobra em múltiplos acontecimentos até ao definitivo ato da Redenção.

Hoje, a palavra acontecimento está envolva em confusão, pois a coisa mais difícil de aceitar é que um acontecimento “seja aquilo que nos faz acordar para nós mesmos, para a esperança, para a moralidade” (ibidem, 27). Definindo: acontecimento é “a transparência do real emergente na experiência, enquanto proveniente do Mistério, ou seja, de alguma coisa que nós não podemos possuir e dominar” (ibidem, 26). Então, quanto tocados por uma presença assim, o homem deixa de identificar a totalidade da vida com algo parcial e limitado, dando-se conta que sozinho não consegue manter um olhar verdadeiro sobre o real.

O acontecimento cristão tem a forma de um encontro, num tempo e num espaço precisos, com uma diferença irredutível, qualitativa, que nos atrai, porque corresponde ao coração, passando também pela comparação e do juízo da razão, provocando a liberdade na sua afetividade. Como facto histórico totalizante, o encontro com Cristo não deixa ninguém indiferente, mas crente.

Como é que a memória do acontecimento passado se mantém viva na sua versão do presente? Através do reconhecimento da profundidade histórica desse mesmo encontro realizado na atualidade.

No encontro começa a fé, porque este traz consigo, veicula, torna presente, algo excecional, de não previsto, de não previsível, que investe radicalmente a vida, a ponto de lhe mudar o princípio do conhecimento, o princípio afetivo e a capacidade construtiva, de outra forma inefável, de Deus. (…) A palavra memória descreve, portanto, a história entre o acontecimento original presença inevitável, indestrutível, inegável: toda a riqueza do início se encontra no presente e é no presente que o homem descobre a divindade da origem. A memória é a história entre a origem e o agora.

Op. cit., 47-48.

Segundo “reza” o martirológio cristão, no calendário de hoje:

André, natural de Betsaida, irmão de Simão Pedro e pescador como ele, foi, primeiramente, discípulo de João Batista e, depois, seguiu a Cristo, a quem apresentou o seu irmão Pedro. Juntamente com Filipe, introduziu à presença de Jesus uns gentios que O queriam ver e foi ele também que indicou o rapaz que tinha os peixes e o pão. Segundo a tradição, depois de Pentecostes, pregou o Evangelho na região da Acaia, na Grécia, e foi crucificado em Patras. A Igreja de Constantinopla venera-o como seu mais insigne Patrono.

Como atrair, hoje, os nossos contemporâneos para Jesus Cristo? Propõe-nos Paulo: (1º) ter o nome de Jesus nos lábios (falar d’Ele); (2º) acreditar com um coração justo. Resumindo: vivendo diante dos outros com coerência entre o que dizemos de Jesus e a forma como praticamos a sua justiça. Só assim, o testemunho dos cristãos de hoje poderá servir de veículo para o encontro original e irredutível com Jesus Cristo.

Curiosamente, na ordem dos sentidos, primeiro conhece-se, depois é que vem o amor. Na ordem da experiência espiritual, primeiro acontece o amor, e só depois é que se procura conhecer ainda mais essa origem e objeto de amor. Na Igreja, temos de nos afastar da tentação de procurar que o “motor” seja meramente o saber, o poder, o fazer e o aparecer… dos mais fortes, os mais ricos, os mais hábeis, o mais célebre, o mais influente… que fazem de nós funcionários, em vez de discípulos-missionários (cf. FRANÇOIS-XAVIER BUSTILLO, no seu recente livro A vocação do padre perante as crises ─ A fidelidade criativa (Ed. do Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima 2022, 36). Portanto, só o muito deixarmo-nos amar e responder com o amor é que poderá levar-nos a saber mais e melhor acerca do mistério de Deus que nos envolve.

Anunciar o Evangelho com “pés formosos” é tatear com delicadeza o chão da realidade humana de hoje, persistindo naquilo que é essencial e fugindo da lógica mundana que cansa, reduz e não atrai os corações. A fraternidade humana universal poderá ser, na ótima de Francisco, um instrumento para desbravar novamente o caminho que leva até Cristo, que ajude a tirar os destroços de apegos que teimem em apagar a memória daquele encontro original que está no coração da história.

Numa das suas homilias sobre o Evangelho segundo João, São João Crisóstomo diz que

André, depois de permanecer com Jesus e de aprender muitas coisas que Jesus tinha ensinado, não escondeu o tesouro só para si, mas correu pressuroso à busca de seu irmão para o tornar participante da sua descoberta. Repara no que diz a seu irmão: Encontrámos o Messias (que significa Cristo). Vês de que modo manifesta tudo o que tinha aprendido em tão pouco tempo? Com efeito, por um lado manifesta o poder do Mestre que os tinha convencido desta verdade, e por outro lado manifesta o interesse e a diligência dos discípulos que desde o princípio se preocupavam em comunicar estas coisas. São as palavras de uma alma que deseja ardentemente a sua vinda, que espera Aquele que havia de vir do Céu, que exulta de alegria quando Ele Se manifestou e se apressa a comunicar aos outros tão grande notícia. A comunicação mútua das coisas espirituais é sinal de amor fraterno, de parentesco amigo e de afecto sincero.

Leitura do Ofício

Só a seguir a este afetar-se pelo seu irmão de André é que se segue a docilidade e a prontidão do seu irmão Pedro, com quem caminha na explicação de tudo o que vivenciou até que a este também arda o coração. “Deixar-se afetar por” e “esperar a docilidade de” ─ não há outra forma de sonhar o encontro sempre original no primeiro anúncio de Jesus Cristo.

Concluindo:
Em Mc 1, 16, André sabe ser irmão no encontro com o Senhor;
Em Jo 1, 40, André sabe ser mediador do encontro do irmão com o Senhor;
Em Jo 6, 8, André sabe ser um verdadeiro ecónomo da justiça de Deus informando sobre o menino que possui os pães e os peixes para a partilha;
Em Jo 12, 22, André é, também, mediador “fora da caixa” entre Jesus e os gregos que pedem para falar com Ele.

Não deixa de ser eloquente e irredutível a comunicação entre o nosso Santo Padre e o Patriarca Ecuménico de Constantinopla, por ocasião desta Festa de Santo André, recordando o santo padroeiro da Igreja de Constantinopla e irmão de Pedro, prova viva da memória entre aquele encontro e seguimento originários da nossa mesma fé e seguimento de Jesus Cristo.

Na mensagem que lhe enviou hoje, o Papa Francisco, reconhecendo que as divisões são o resultado de ações e atitudes lamentáveis que impedem a ação do Espírito Santo, refere:

O pleno restabelecimento da comunhão entre todos os que acreditam em Jesus Cristo é um compromisso irrevogável para cada cristão, já que a “unidade de todos” (cf. Liturgia de São João Crisóstomo) não é apenas a vontade de Deus, mas também uma prioridade urgente no mundo atual. De fato, o mundo de hoje está precisando muito de reconciliação, fraternidade e unidade. A Igreja, portanto, deveria brilhar como “sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de toda a raça humana” (Lumen gentium, n. 1). (…) O diálogo e o encontro são o único caminho para superar os conflitos e todas as formas de violência.