Ser protagonistas no Espírito Santo é descobrir a Verdade escondida por detrás das Palavras de Jesus impressas no nosso coração crente

At 16, 22-34; Jo 16, 5-11

Ponhamo-nos na pele dos discípulos de Jesus, a quem Ele fala de perseguições e anuncia a sua partida para o Pai. Não nos surpreenderá o seu sentimento humano de tristeza. Se aqueles discípulos estivessem aqui no Seminário, poderíamos vê-los na ponte entre a etapa da configuração e a de síntese vocacional, já fora da comunidade do Seminário. Que é o mesmo que dizer entre o desejo do protagonismo, porque conscientes dos valores do Mestre, e o medo da responsabilidade na ausência aparente do Mestre.

Pode acontecer, eventualmente, nos candidatos ao presbiterado que estão já fora do Seminário, na denominada etapa da síntese vocacional (cf. Ratio Fundamentalis Istitutionis Sacerdotalis, nn. 74-79), que vivem este transe entre o querer estar sozinhos numa ação pastoral, sentindo-se protagonistas de uma ação concreta sem a vigilância direta dos atuais formadores, e, por causa do cansaço ou da dureza da missão, o medo do desacompanhamento direto dos mesmos formadores. Ouvi alguém dizer (e penso com razão) que a autoridade delega-se, mas a responsabilidade não. Parece-me que o desejo do protagonismo no seu sentido denotativo ─ destaque pessoal, distinção ─ pode perder o seu fervor quando se vivencia o seu sentido figurativo que é a qualidade de ter iniciativa (cf. dicionário). O Evangelho dá-nos a impressão de que Jesus está a espicaçar a iniciativa dos discípulos, no «nenhum de vós Me pergunta: “para onde vais?”». O núcleo da questão que aqui quero refletir é a diferença entre o estarmos e o sentirmo-nos sozinhos ou acompanhados real e não só aparentemente.

Para aqueles que estão prestes a ser protagonistas como Apóstolos a partir do Pentecostes, a pedagogia de Jesus é clara, dentro da Verdade que anuncia: conforta os seus discípulos, no momento em que começa a pôr “a faca e o queijo” nas suas mãos. Para que lhes possa delegar a sua Autoridade ─ no Espírito da Verdade ─ eles são chamados a uma responsabilidade: a da coragem de viver sob essa mesma verdade, como alegres testemunhas. O episódio que hoje proclamamos dos Atos dos Apóstolos é a prova real de que é possível não ter medo de exercer um protagonismo pessoal dentro de circunstâncias adversas e, ao mesmo tempo e a confirmar a presensa do Espírito de Jesus, contemplar o protagonista principal que Cristo lhes deixou, o próprio Espírito Santo que consola e defende. Hoje celebra-se o Dia Internacional do Viver Juntos em Paz; vejamos como pode estrebuchar a paz de dentro de uma prisão! Este é um dos sinais de uma madura síntese vocacional em ato presente concretamente em Paulo e Silas.

69. Não se pode esquecer, finalmente, que o próprio candidato ao sacerdócio deve ser considerado protagonista necessário e insubstituível na sua formação: toda e qualquer formação, naturalmente incluindo a sacerdotal, é no fim de contas uma auto-formação. Ninguém, de facto, nos pode substituir na liberdade responsável que temos como pessoas individuais.

Certamente também o futuro sacerdote, e ele antes de mais ninguém, deve crescer na consciência de que o protagonista por antonomásia da sua formação é o Espírito Santo que, com o dom do coração novo, configura e assimila a Jesus Cristo Bom Pastor: nesse sentido, o candidato afirmará a sua liberdade da maneira mais radical, ao acolher a acção formadora do Espírito. Mas acolher esta acção significa também, da parte do candidato ao sacerdócio, acolher as “mediações” humanas de que o Espírito se serve. Por isso mesmo, a acção dos vários educadores só se revela verdadeira e plenamente eficaz se o futuro sacerdote lhe oferece a sua pessoal, convicta e cordial colaboração.

JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-sinodal “Pastores DAbo Vobis”, n. 69.

O “magis” pascal que dá sentido ao caminho quaresmal é a síntese entre o verdadeiro saber, o coerente fazer e o honesto sentir

Jr 18, 18-20; Mt 20, 17-28

Vamos subir a Jerusalém e o Filho do homem vai ser entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que O condenarão à morte e O entregarão aos gentios, para ser por eles escarnecido, açoitado e crucificado. Mas*, ao terceiro dia, Ele ressuscitará.

Ao fazer a lectio divina deste texto, o meu olhar decalcou em primeiro lugar a relação aparentemente desproporcionada entre o empreendedorismo litúrgico dedicado ao caminho quaresmal e ao fluir quase líquido do tempo pascal. Mas é só um pensar aparente, pois, na verdade, a Páscoa, na pastoral da Igreja, apresenta-nos, «em saída», na Liturgia da Vida, várias propostas de “ressurreição” pessoal e comunitária, como são os exemplos das Semanas das Vocações e da Vida, entre muitos outros.

Nestes dois versículos está o sumário do anúncio derradeiro da Paixão-Morte-Ressurreição que constitui o kérigma pascal. Síntese vocacional de todos os que se colocam a seguir Cristo de forma radical, até às últimas consequências.

Porém, se o evangelista nos relata o querer desviado dos discípulos, incluindo a mãe dos filhos de Zebedeu, é porque existe a probabilidade de aquela radicalidade não ser real, mas aparente.

É neste contexto que Alessandro Manenti (Vocazione, Psicologia e Grazia. Prospettive di integrazione, EDB, Bologna 20066, 79-84) ousa apresentar os meios da formação, diferenciando-os como primários e assessórios, no seguimento de Jesus Cristo:

MEIOS PRIMÁRIOS ─ Meios que por natureza ajudam diretamente a alcançar o objetivo da formação, interiorizando os valores da sequela de Cristo e da união com Deus, através de duas forças: adquirir os ideais livres e objetivos que sejam fonte de confronto contínuo (maturidade vocacional); e conhecer-se nas próprias resistências a viver os ideais (maturidade psicológica). Ei-los:

1) Discipulado

2) Ideais claros

3) Radicalidade, mas em factos

4) Ser autênticos

MEIOS ACESSÓRIOS ─ que podem beneficiar colateralmente os meios primários:

1) Experiências, mas com cuidado quanto ao horizonte/meta

2) Dinâmicas de grupo, se bem programadas e avaliadas

3) Discernimento, sobretudo pessoal


Como reflete Tomás Halik, na sua Introdução espiritual à Assembleia sinodal da continente europeu, em Praga,

Só Jesus pode dizer: Eu sou a verdade. E ao mesmo tempo diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Uma verdade que não fosse viva e não fosse caminho seria como uma ideologia, uma mera teoria. A ortodoxia deve ser combinada com a ortopraxis, a ação correta. E não devemos esquecer a terceira e mais profunda dimensão, a de viver na verdade. Esta é a ortopatia, paixão reta, desejo, experiência interior ─ espiritualidade. Sobretudo, é através da espiritualidade ─ a experiência dos crentes individuais e do conjunto da Igreja ─ que o Espírito gradualmente nos introduz na totalidade da verdade. As três, ortodoxia, ortopraxis e ortopatia, necessitam-se reciprocamente. Ainda que a ortodoxia (ideias corretas) possa ser intelectualmente atrativa, sem a ortopraxis (ação correta) é ineficaz e sem a ortopatia (sentimento correto), é fria, imatura e superficial.

Introdução espiritual à Assembleia

A averiguação da sincronia entre ortodoxia, ortopráxis e ortopatia pode ser uma boa forma de os educadores na fé, os formadores na vocação e os agentes pastorais em geral verificarem se os meios acessórios com os quais gastamos a maior parte do nosso tempo pedagógico chegam a pôr em ação os meios primários do seguimento de Jesus, como se de uma tabela se tratasse:

OrtopatiaOrtopráxisOrtodoxia
Discipulado???
Ideais claros???
Radicalidade em factos???
Autenticidade???

* No Latim, “mas” diz-se “magis” (cf. Infopédia). Por vezes, num caminho libertador, podemos correr o risco de nos contentar-nos com o “menos”, desviando-nos do propósito inicial. Foi o que aconteceu com o povo hebreu no deserto, querendo desistir por causa da fome das coisas terrenas, esquecendo-se da terra prometida (onde corria leite e mel) e querendo voltar para o Egito, comendo a carne e o pão dos escravos: Toda a comunidade dos filhos de Israel começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão. Disseram-lhes os filhos de Israel: «Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egipto, quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne e comíamos pão até nos saciarmos. Trouxestes-nos a este deserto, para deixar morrer à fome toda esta multidão»(Êxodo 16, 1-18. 35).

No caminho quaresmal, devemos atende sempre ao mais que é a promessa da Ressurreição, não nos deixando escandalizar pelo sacrifício (sacrum facere, fazer sacro que é acabar com o mal) a que nos implica o caminho.

“Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho” é apanágio (privilégio) da fidelidade criativa e do realismo esperançoso do Cristianismo

At 13, 46-49; Sl 116 (117), 1. 2; Lc 10, 1-9 ─ Na Festa dos Santos Cirilo e Metódio, copatronos da Europa

Já no século IX se viveu na missão da Igreja uma das tensões generativas hoje levadas a sério no discernimento sinodal que está presente hoje concretamente na Europa: a adequação das linguagens da comunicabilidade da fé à compreensão dos contemporâneos de diferentes culturas. Dentro da Doutrina Social da Igreja prefere-se falar da conceção analógica do ser do que da sua alternativa conceção unívoca. Esta deita por terra qualquer possibilidade de traduzir a mesma verdade em diferentes línguas para que chegue a um maior número, como é atributo do acontecimento do Pentecostes.

Os irmãos Cirilo e Metódio fizeram com os eslavos o que Tolkien fez com a comunidade pós-guerra: a criação de um alfabeto para transmitir os valores do Evangelho, de forma a que os mesmos fossem compreensíveis pela humanidade num determinado contexto. Apesar de aqueles dois irmãos terem traduzido o Evangelho e os textos litúrgicos (já naquele século!), foram considerados heréticos por não celebrarem Missa em latim, problema ultrapassado pelo Papa Adriano II, que lhes deu razão. O Apóstolo Paulo sofreu alto de parecido com a tradução para grego popular na evangelização dos gentios. Paulo dominava o chamado code-switching, isto é, passava de um a outro registo linguístico para evangelizar a um maior número. E os escritos dos cristãos C.S. Lewis e Tolkien valorizados com a linguagem do cinema! Portanto, uma linguagem inclusiva no caminho da verdade. Jesus já a utilizava, tendo várias formas de se expressar consoante o seu público (a todos em parábolas, em particular com explicações e exortações, etc.). É pena que as invejas geradas nestas tensões gerem equívocos que são veneno para a própria evangelização, que fizeram os santos Cirilo e Metódio sofrer uma forma de “martírio branco” (cf. Liturgia das Horas).

O Evangelho que Jesus convida a anunciar é o Evangelho da Paz. E todos somos poucos para o anunciar. E a primeira condição para que ele possa ser acolhido é haver “gente de paz”, quer dizer, pessoas com a predisposição para caminharem à luz dessa Paz enviada por Cristo. Depois, o método é “mais de Deus e menos de mim”. Não nos devemos perder em preciosismos e perfeccionismos que geram ansiedade (= traços insanos de personalidade ou tendências involuntárias que nos levam a comportar-nos ou a reagir de modo desproporcionado e que nos fazem dano a nós e aos outros), se quisermos ser anunciadores do Evangelho. É preciso curar e dizer que o Reino de Deus está perto!

Como aprendemos em Doutrina Social da Igreja, professamos a possibilidade de que ninguém seja excluído do anúncio da verdade que edifica e dignifica o ser humano. Como os gentios se encheram de alegria, glorificando a Palavra do Senhor proclamada pelo Apóstolo Paulo, que muitos homens e mulheres do nosso tempo possam ter acesso à verdade do Evangelho traduzida pela nossa maneira de viver que, como alguém dizia, para algumas pessoas será única forma a que lhe terão acesso. Não falar de forma a que as pessoas entendam é uma das sub-reptícias formas de indiferença e não há nada mais caro do que aquilo que somos chamados a facultar de graça.

Uma das formas de abuso de poder pode ser possuir a sabedoria e delimitar o caminho da mesma a um mínimo número de pessoas, codificando essa sabedoria para tirar proveito dela mais tarde. Fakenews não são só a veiculação de mentiras, mas também o encobrimento das verdades. Formas de desinformação que atrasam o desenvolvimento humano e as ações de amor que necessitam de ser praticadas em favor da sua dignidade. Se o nosso trabalho não tiver em vista o bem integral da pessoa e estiver mais preocupado pela defesa da instituição, acontecem as deepfakes, formas ainda mais graves e subliminares de controle religioso e social.

Anselm Grün, em “Poder, Uma força sedutora“, elencando como fontes a matéria, a origem, a maioria, o conhecimento, os sentimentos, a função, os contactos, as convicções, e os locais casa, mercado, castelo e templo, avisa-nos que tudo pode ser utilizado para convencer e levar a uma vida saudável ou, então, ser exercidos como poder que assusta as pessoas. A questão do poder, portanto, não se trata de saber se há poder ou não, mas como é que ele é exercido desde aquelas fontes e naquelas áreas da vida humana. Do ponto de vista pastoral, nunca se abusará do poder se se escutarem as pessoas e se for ao encontro da satisfação das suas necessidades mais básicas de humanização. Tudo o que for contra este alicerce será um abuso.

Numa das etapas da história da formação presbiteral encontramos uma tendência intitulada por Amedeo Cencini de “módulo único”, ou seja, o facto de um sacerdote se especializar numa determinada área da pastoral e defendê-la como absoluta, o que gera fragmentações da integralidade do que é ou deve ser a vida cristã. Não obstante o valor da especialização numa determinada área, que ajuda a aprofundar e a levar dons à prática, a falta de correspondência com as outras áreas pode levar à fragmentação do povo de Deus que se é chamado a servir como um corpo. A situação de um dom vivido numa tentativa obsessiva de profundidade, sem relação com Quem o doa na perspetiva da rentabilização em favor dos outros pode ser também considerada uma deepfake. Quem transporta boas notícias não deve ter medo de as traduzir no maior número de línguas possível, tendo, para isso, de pedir ajuda a colaboradores que traduzam.

Hoje celebra-se, a nível social, o Dia Internacional da Doação de Livros. Penso ser esta uma forma de ajudar as outras pessoas a fazer caminho para a verdade: oferecer livros bons, sobretudo que nos tenham feito crescer a quem os oferece.

Oferecer a Deus sacrifícios de louvor ajuda-nos a reagir às circunstâncias da vida de forma mais purificadora e pacificadora. Da fraternidade umbilical à fraternidade universal

Gn 4, 1-15. 25; Mc 8, 11-13

O que aconteceu entre os irmão Caim e Abel repetiu-se e repete-se hoje em dia entre os irmãos de sangue e de humanidade. Na interpretação do texto de Gn 4, é básico afirmar que a criatura que põe de lado o seu Criador, substituindo-O, mais tarde ou mais cedo acaba por cometer algum tipo de “fratricídio”. Quem é contra a linguagem da “fraternidade universal” acaba por esconder um certo ressentimento “caínico” (relativo a Caim). E a culpa nem está em Deus, nem em Abel. Como Jesus referiu, não é o que está fora que torna impuro o ser humano, mas o que sai de dentro do seu coração (cf. Mc 7,15).

O hábito de rezar os Salmos na Liturgia das Horas poupou muitos clérigos e religiosos, que a devem rezar por dever, e muitas outras pessoas de cometer “fratricídios”, pelo menos, através de palavras ou ações de algum modo “mortíferas”. Rezar salmos é como “oferecer sacrifícios de louvor”, quer a vida corra bem, quer a vida corra mal. Com as bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12), Jesus garantiu-nos que qualquer ponto de partida menos bom pode ser um início de superação e caminho para uma vida bem conseguida.

Temos vindo a acompanhar o debate entre a obsessão dos escribas e fariseus pela observância das Leis (sem revisão, nem discernimento, nem confronto) e a autoridade divina das palavras e modo de proceder de Jesus. Para Jesus há o completar da lei para viver em plenitude, desde o coração; para os escribas há um mero cumprimento externo da Lei. Para os escribas vale a lei sem Deus; para Jesus, o Pai é o princípio de toda a lei. Excluir Deus como fonte inesgotável de vida que se renova e nos renova constantemente é excluir os outros como irmãos de uma mesma família, criando grupos ou estratos sociais. A este respeito, infelizmente, não é difícil constatar que a afirmação de classes sócio-económicas se projeta na Igreja criando e defendendo a existência de grupos. Pode afirmar-se que é uma forma mais fácil de viver o Evangelho, mas na verdade, o motivo principal é a influência social, o Evangelho viria depois. Ora, se o Evangelho não vier primeiro, Deus e os irmãos ─ que Jesus coloca ao mesmo nível de avaliação moral ─ ficaram em segundo plano, reservando-se para primeiro os interesses pessoais ou grupais. Nestes grupos, é evidente a obsessão por “sinais” que não são os “sinais dos tempos” a que se refere o Magistério da Igreja, mas os identificativos ou patenteadores da pertença a um certo grupo. Ocupados que estão na autorreferencialidade, desde a autossuficiência, não perceberão dos sinais que Jesus possa realizar entre todos. A este respeito, a pastoral da Igreja segue/deve seguir outro sentido, mesmo que a partir de dinâmicas de grupos.

Jesus convida os discípulos a deixar essas margens, subindo para o barco da Igreja, chamada a renovar-se e a purificar-se das tendências sociais que desumanizam, e a partir para outra margem. Esta margem, apoiada no Evangelho e refletida hoje à luz do Espírito Santo, sob a autoridade reconhecida do Magistério da Igreja, põe de lado todo o tipo de ações que possam ferir a humanidade, toda a humanidade. Não basta tender a gostar de toda a Bíblia e de todo o Magistério e, depois, não amar toda a humanidade. Deus está acima de todos nós e não O podemos adorar só a pensar numa parcela de humanidade, nem mesmo deixando de fora os inimigos (cf. Mt 5,44).

Na abertura da assembleia sinodal em Praga, Tomáš Halík, na sua introdução espiritual, aconselha que

A Igreja precisa de aliados, se souber abordá-los sem arrogância. Se a Igreja quer contribuir para a transformação do mundo, tem de se transformar a si mesma de modo permanente. (…) O lado negro da globalização está a manifestar-se hoje. Pense-se na propagação global da violência, desde os ataques terroristas aos Estados Unidos em 2001 até ao terrorismo de estado do imperialismo russo e ao atual genocídio russo na Ucrânia; pandemias de doenças infeciosas; a destruição do ambiente natural; à destruição do clima moral através do populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e fundamentalismo religioso.

Convocando a figura do jesuíta Teilhard de Chardin (1881-1955), chamou-o um dos primeiros profetas da mundialização, para quem

a única força que une sem destruir” não é o progresso ou o desenvolvimento, mas o amor, tal como surge testemunhado nos evangelhos.

Halík acredita que este é, assim,

um momento decisivo, a viragem do cristianismo para a sinodalidade, a transformação da Igreja numa vibrante comunidade de peregrinos, que pode ter impacto sobre o destino de toda a família humana. (…) Será que o cristianismo europeu tem hoje a coragem e a energia espiritual para evitar a ameaça de um ‘choque de civilizações’, transformando o processo de globalização num processo de comunicação, partilha e enriquecimento mútuo, numa civitas ecumenica, uma escola de amor e fraternidade universal?

A proteção do Senhor paira sobre o Caim de todos os tempos, não obstante o ato que o fez desertar da primeira experiência de fraternidade a que poderíamos chamar de “umbilical”. Doravante, com a experiência da memória do mal feito, num ímpeto de conversão livre para o bem proposto, somos todos chamados a (re)construir a fraternidade universal.

Os mandamentos do Senhor são sempre co-mandamentos. Realizar na perfeição a vontade de Deus neste mundo implica abrir a ferida, curar e soturar

Sir 15, 16-21 (15-20); 1Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37VI Domingo do Tempo Comum (A)

Se soubéssemos o dom de Deus que está na “árvore da vida”, da qual não foi nem é proibido saciarmo-nos ─ a Palavra de Deus, os Sacramentos e a Caridade ─ não faríamos do caminho da fé uma “religião de leis”. A causa desta tendência é o facto de teimarmos em ficarmos especados a olhar para a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Muito embora o Cristianismo tenha nascido no seio do Judaísmo, a vida em Cristo é uma proposta e uma tentativa de resolução do debate entre a autoridade divina de Jesus ─ gestão da Graça ─ e a dependência na obsessão do mérito pessoal ─ gestão do cumprimento de leis. São Paulo empenhou-se na gestão deste debate até ao fundo.

Não é que não deva haver uma declaração de fronteiras, sobretudo aquelas para além das quais a vida humana se perde, delimitando o ambiente em que se recebe e protege a vida. Quem não viu o filme animado do Rei Leão, em que o pequeno Simba pergunta ao Mufassa seu pai, que zona escura é aquela nos confins do seu reino? O rei da selva rapidamente recomenda ao filho herdeiro que não deve invadir aquele espaço, por causa do risco de perder a vida. E o fruto proibido é sempre o mais apetecido, pois o seu tio ressentido acaba por servir de “serpente” ao seu sobrinho, entusiasmando a desobedecer ao pai, que acaba por morrer ao salvá-lo. Está claro que é preciso haver fronteiras.

Infelizmente, com a colocação obsessiva da atenção na religião como mero cumprimentos de leis ou proibições, esquecemo-nos de dar atenção ─ a mais proveitosa, positiva e importante ─ em como habitar o espaço de onde se recebe e desenvolve a vida e a saúde física, psicológica e espiritual. Como habitar criativamente a vida, como criaturas?

O caminho é “abusarmos” em comer o fruto da árvore da vida, do qual Deus não nos proibiu de comer. É Jesus, na sua Palavra, nos Sacramentos e na Caridade. Deixar de visitar tanto a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, do qual Deus nos proibiu de comer, porque só Ele é Deus.

Este é o cerne do confronto entre Jesus e os escribas. Estes estavam sempre a apontar para as leis, mesmo que delas não dessem exemplo. Jesus estava sempre a apontar para o Pai. Os escribas ignoravam que a vocação humana é um caminho de diálogo entre duas autoridades ─ a sabedoria do amor Deus e a vontade da liberdade humana ─ a partir das coisas pequenas e concretas da vida no confronto com os outros. Os mandamentos do Senhor são co-mandamentos (como sugere o inglês commandments). O que Ele manda, Ele vive, acompanhando-nos no crescimento para aonde nos quer levar.

A alegria de ser cristão é a alegria de ser Igreja em expansão, passando pela cruz

Gn 1, 1-19; Mc 6, 53-56 ─ na memória obrigatória de São Paulo Miki e Companheiros

Na história do martírio dos japoneses Paulo Miki e Companheiros, padroeiros do Japão juntamente com S. Francisco Xavier, contemplamos não só a constância de todos, com os olhares fixos no céu, mas também como cantavam salmos de ação de graças entregando a alma a Deus e rezando. Paulo Miki acolhia a cruz como uma tribuna que nunca tivera, dando graças por tão elevado benefício, e declarando “não haver outro caminho para a salvação do que aquela que possuem os cristãos”, caminho que nos ensina a “perdoar os inimigos”, pedindo a “todos que se batizem”. Da sua cruz, Paulo Miki anima os companheiros, suscitando no irmão Luís uma expressão corporal de alegria que mais parecia desporto na cruz. A expressão “Jesus, Maria” e a exortação aos presentes que todos levassem uma vida digna serve de passaporte para o céu, nas mãos dos seus carrascos. (Cf. Leitura do Ofício)

É desta mesma alegria que o Papa Francisco está a falar, quando nos convida a passar para uma nova etapa evangelizadora, “a Alegria do Evangelho [que] enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii gaudium, 1). É a mesma alegria que exorta aos congoleses, nesta sua viagem recente, que confirmada pela paz diz de quem pertence a Jesus, sem deixar prevalecer a tristeza. O Papa confirma-lhes que “se ao nosso redor se respira este clima [de tristeza], que não seja por nossa causa: num mundo desanimado com a violência e a guerra, os cristãos fazem como Jesus. Ele, como que insistindo, repetiu para os discípulos: A paz esteja convosco! E nós somos chamados a assumir e proclamar ao mundo este inesperado e profético anúncio de paz”, indicando as “três nascentes da paz, três fontes para continuar a alimentá-la: o perdão, a comunidade e a missão”. Garante que Jesus “conhece as suas feridas, conhece as feridas do seu país, do seu povo, da tua terra! São feridas que ardem, continuamente infetadas pelo ódio e a violência, enquanto o remédio da justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca mais chegar. É isto que Cristo deseja: ungir-nos com o seu perdão.” Diz-lhes ainda: “Irmãos, irmãs, somos chamados a ser missionários de paz, e isto nos encherá de paz. Trata-se de uma opção: é dar espaço a todos no coração, é acreditar que as diferenças étnicas, regionais, sociais e religiosas vêm em segundo lugar e não são obstáculo; que os outros são irmãos e irmãs, membros da mesma comunidade humana; que cada um é destinatário da paz trazida ao mundo por Jesus. É acreditar que nós, cristãos, somos chamados a colaborar com todos, a romper a espiral da violência, a desmantelar os enredos do ódio. (…) “A paz esteja convosco: diz Jesus hoje a cada família, comunidade, etnia, bairro e cidade deste grande país. A paz esteja convosco: deixemos que ressoem no coração, em silêncio, estas palavras de nosso Senhor. Ouçamo-las dirigidas a nós e escolhamos ser testemunhas de perdão, protagonistas na comunidade, pessoas em missão de paz no mundo””, concluiu Francisco.”

Penso que esta visita ao Congo e ao Sudão do Sul ajudam-nos a contemplar o Evangelho proclamado hoje. Alguns judeus não só fugiam de quem estivesse com doenças, como os afastavam da sociedade, criando um espaço de segurança de controlo (não de auto-controlo), não se deixando tocar, nem tocando a vida de quem padecia tormentos. Ainda por cima, impunham justificações morais às doenças dos outros, para terem crédito diante da comunidade religiosa. Jesus e os seus discípulos “desembarcam” a comunidade numa nova história, onde não há medo de tocar a vida dos doentes, seja de que enfermidade for (a existência do medo é que é sinal de pouca confiança no poder de Deus!). É curioso que o evangelista Marcos nos conte que no desembarque de Jesus e dos seus discípulos, “as pessoas reconheceram logo Jesus”, trazendo-lhes os seus doentes para que os tocasse. Tal era a sua fé. “E todos os que O tocavam ficavam curados”! Quem coloca entraves ao desembarque da Igreja para outras margens não sabe o que está a fazer nela, fechando-a ao Espírito de Jesus Cristo.

A leitura do Génesis, nesta ocasião, pode-nos ajudar a contemplar que o mesmo poder criador de Deus está nas palavras e ações de Jesus. De dia para dia, no quotidiano da Sua ação, acontece a nova criação. Somos criaturas chamadas a ser novas criaturas!

A libertação da escravatura das paixões requer a renovação da mente

Heb 13, 1-8; Mc 6, 14-29

Depois de ontem termos acolhido de braços abertos a Luz das nações, como Simeão, hoje somos convidados a refletir sobre a Hospitalidade com a qual, sem o sabermos, poderemos vir a hospedar anjos. Para isso, precisamos de permanecer no amor fraterno, levando-o até às últimas consequências, começando por nos colocarmos na “pele” dos outros. A base desta capacidade é a confiança em Deus, que não abandona quem o honra com a pureza de intenções e do coração.

Para conseguirmos ter a coragem de viver assim, precisamos de fazer como nos sugere o Papa Francisco:

Coloque a sua vida sob a Palavra de Deus. Este é o caminho que nos apontou a Igreja: todos, mesmo os Pastores da Igreja, estamos sob a autoridade da Palavra de Deus; não sob os nossos gostos, as nossas tendências e preferências, mas unicamente sob a Palavra de Deus que nos molda, converte e pede para permanecermos unidos na única Igreja de Cristo. Então, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: A minha vida, que direção toma; de onde tira a orientação? Das numerosas palavras que escuto, das ideologias ou da Palavra de Deus que me guia e purifica? E em mim, quais são os aspetos que exigem mudança e conversão?”

Ver vídeo aqui

O Herodes Antipas, apesar de ser mais coerente que os fariseus que o apoiavam (cf. VV.AA., Comentáros à Bíblia Litúrgica, Gráfica de Coimbra 2, Assafarge 2007, 973), dividido entre as suas paixões e admiração pelo Batista, contrasta com a figura de Simeão que, sem confusões entre o coração e a sua mente, esperava a Luz de Israel no Menino Deus. À divisão interior de Herodes bastou um “interruptor” maligno acionado por Herodíades e Salomé, para escolher a pior parte: a da desonra para a qual João Batista já o vinha continuamente a avisar.

O Papa Francisco, na homilia da Festa da Apresentação do Senhor do ano 2022, na Eucaristia com os membros dois Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, coloca três perguntas que poderão ajudar a não estar divididos e a viver segundo a referência dos idosos que preservavam a esperança de Israel, sem estarem reféns de nenhum poder mundano:
1) O que é que nos faz mover? (As moções interiores do Espírito ou as moções espirituais mundanas?)
2) O que veem os nossos olhos? (A sabedoria de Deus na fragilidade, que nos ajuda a ver dentro e mais além, ou o saudosismo daquilo que já não existe?)
3) Que estreitamos nos braços? (Jesus e quem Ele representa ou o ativismo e a rigidez em coisas que nos afasta d’Ele?)

Ainda que com João Batista Deus tenha preparado o caminho do Senhor, com a presença de Jesus inaugura uma história nova, com uma nova pedagogia, que, não obstante a experiência da Cruz, abre espaço para a Ressurreição.

Tudo o que fazemos seja para que Se manifeste Jesus, que nos banha com o Espírito Santo e nos chama a viver o amor em CSS

Is 49, 3. 5-6; 1Cor 1, 1-3; Jo 1, 29-34 ─ no II Domingo do Tempo Comum (A); reflexão inspirada em Jose Antonio Pagola e em Comentário à liturgia do 2.º Domingo do Tempo Comum – Ano A

(Faço aqui um parêntesis informático performativo para informáticos:)
Uma das coisas mais interessantes que aprendi ao fabricar páginas na Internet ─ antigamente a partir da linguagem html/php e hoje a partir de plataformas open source/sistemas de gestão de conteúdos (CMS) que nos facilitam muito a vida na arte de comunicar pastoral on-line ─ foi a possibilidade de lidar com “folhas de estilo em cascata” (CSS ou Cascade Style Sheets). A sua função, ainda hoje muito importante, é a de criarmos uma folha fácil de carregar onde possam estar escritas todas as programações de estilo que poderão ser chamadas em qualquer página do sistema, quando o programador bem entender. Esta forma de comunicar permite não tornar pesado um sítio da Internet e de ter as coordenadas de estilo sempre à mão. Diante deste episódio do Batismo de Jesus, penso na partilha do Espírito Santo, do Pai para o Filho Unigénito e para nós, como uma “fonte de amor em cascata”: desde então, há uma forma de ser que pode ser acoplada ao mesmo Espírito segundo o Qual Jesus fala e atua. Podemos ver numa única folha de estilos para o governo da estética de um website como o único Espírito com que Deus Pai governa o mundo a partir de Jesus Cristo. Podemos ver isso de forma nítida em 1Cor 12,4-7: Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum.

No Evangelho de hoje recebemos o testemunho de João acerca do Batismo de Jesus no Rio Jordão, no início da Sua vida pública (descrito em Lc 3,21-22, em Mc 1,9-11 e em Mt 3,13-17 de maneira mais pormenorizada).

Logo após as celebrações do Natal, temos neste II Domingo do Tempo Comum a oportunidade para colher a identidade e missão de Jesus que é apresentado como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. É este o propósito da Encarnação de Jesus: a Paixão, Morte e Ressurreição para nossa salvação. É este o Mistério de Cristo que João Batista anuncia em duas etapas: anuncia a vida, chamando a “preparar o caminho do Senhor” e anuncia o seu percurso até à Páscoa.

Deste que constitui o primeiro dos mistérios luminosos, extraio as seguintes lições:

1 O amor incondicional de Deus manifestado no início da vida pública de Jesus é garantia do amor condicional que é destinado a todo o ser humano. Jesus coloca-se na fila dos pecadores que vão receber o batismo de água de João Batista, mesmo não sendo pecador. Na versão de Mateus Jesus responde ao Batista que “É conveniente que assim cumpramos toda a justiça”, interpretando-se como a “justiça superior” da compaixão ou misericórdia. Portanto, no início da vida pública de Jesus, a voz de Deus informa que o que quer realizar através do seu Filho Unigénito é um plano de amor para toda a humanidade. O amor incondicional de Deus é fonte de autoestima.

2 Neste Evangelho está bem patente a diferença do batismo de água que João administra e o batismo no Espírito que só Jesus é que pode realizar. Na Igreja, estes elementos aparecem unificados numa realidade só: no upgrade, ou seja, na atualização que Jesus fez, ao deixar-Se batizar. Jesus submerge os seus no Espírito Santo. Ele possui a plenitude do Espírito de Deus, podendo comunicar aos seus essa mesma plenitude. A grande novidade do batismo cristão é que Jesus Cristo pode “batizar no Espírito Santo”. Não se trata de um banho externo, mas um banho interior, no qual Jesus nos “empapa” do Espírito Santo para nos transformar o coração. A “pomba” é sinal da unção sobre Jesus, Aquele que vem restaurar os destinos de Israel. Ele traz a força, mas não é como esperavam: não vem impor nada pelo domínio ou manipulação dos outros, mas propor uma nova maneira de viver e de relacionar-se com Deus que parte do amor e da fraternidade universal. O amor incondicional é fonte de vida nova.

3 Ser batizados não é um mero requisito tradicional. Não podemos correr o risco de ficar pelo batismo de água ou de penitência, que o é, mas somos chamados a deixar que Jesus nos implique viver um novo nível de existência cristã, etapa após etapa, através de um estilo em que vivamos mais fiéis a Cristo Jesus. O Espírito de Jesus é o Espírito da Verdade, que nos permite não nos deixarmos enganar por falsas seguranças, dentro da nossa identidade irrenunciável de seguidores de Jesus. Para isso, é preciso abandonar caminhos que nos desviam do Evangelho, de interesses egoístas e do bem-estar que nos faz ser cobardes. O amor incondicional é fonte de liberdade.

4 É o Espírito Santo que transmitido por Jesus que nos permite fazer da fé um processo contínuo de conversão e não um caminho terminado. É o Espírito da conversão, que nos permite deixarmo-nos transformar lentamente por Ele, que nos ensina a vivermos segundo critérios e atitudes que manifestam o coração de Deus na nossa forma de nos relacionarmos com os outros. Os céus que se fecharam pela atitude os nossos primeiros pais, são agora abertos por Jesus, na nova relação que estabelece com o Pai. Deixemo-nos atrair pela novidade criadora deste relação, que pode despertar o que há de melhor no coração de cada um de nós e do interior da Igreja para fora. Pelo Espírito Santo, Jesus vem fazer uma proposta totalmente nova, original, mostrando-nos que valemos por aquilo que nós somos e não por aquilo que podemos dar. É o que se mostrará nos capítulos seguintes no Evangelho segundo João. Jesus é capaz de fazer os sinais manifestados porque Ele é o Messias esperado e enviado do Pai. O amor incondicional é fonte de renovação.

A compaixão é o ajoelhar do coração diante da necessidade fundamental do outro

Heb 3, 7-14; Mc 1, 40-45

É surpreendente o início da vida pública de Jesus, segundo o que nos relata o evangelista Marcos. A sua compaixão que não pede licença a preconceitos para agir imediatamente em favor daquele leproso, a quem, por causa da lepra, tinham tirado cidadania. Surpreende, também, humildade crente de pessoas carentes de um amor incondicional ─ como é o caso daquele leproso ─ necessitado de ser reconhecido tal como é e amado simplesmente por existir. Faz-nos lembrar todos aqueles que, hoje, vivem à margem dos sistemas políticos e religiosos, fechados num limbo por uma barreira de uma ética mal resolvida.

Menos surpreendente é a atitude dos que delimitam uma zona convivencial com um sistema político-religioso, através de uma moral que demora a perceber que a dignidade de uma pessoa é o imperativo categórico pelo qual não há preço a pagar, porque não vale dinheiro, mas unicamente a aceitação da pessoa, distinta do mal que é preciso curar nela, gaste-se o que se gastar. Esta atitude gerava em Jesus um sentimento oposto ao da compaixão: a ira. E se a compaixão O levava a curar sem demora, a ira levava-O a Ele para o deserto, para recomeçar de novo, num projeto divino que, para ter progresso messiânico, teria de implicar ruturas e continuidades em relação ao passado.

No tempo de Jesus, tal como no nosso, existia o perigo de uma sobre-excitação messiânica mal resolvida que derivava num movimento messiânico prematuro. Jesus fugia disto e advertia aos que curava de não o divulgassem, por causa do triunfalismo que isso poderia causar. O ex-leproso quebrou o “segredo messiânico”, aquele que permite “passar por meio dos pingos da chuva” tóxica que corrói a permeabilidade à graça de Deus. Esta é a única que responde e é capaz de colmatar as necessidades mais profundas do ser humano: a nível físico, psicológico e espiritual.

Verdade verdadinha: onde há sistemas (sejam eles de que tipo for) que não permitem a satisfação ou cura no que toca a necessidades básicas das pessoas ─ a nível físico, psicológico e espiritual ─ há ideologias que fogem ao espírito da interdiplinariedade (a nível da Igreja diremos de sinodalidade), com medo de perder a autossuficiência e autorreferencialidade. E está patente o abuso de poder. E quem cai nele habitualmente não deixa que o poder curador da compaixão de Jesus entre nele, para deixar cair prerrogativas humanas que resistem à vontade divina de salvar.

Como nos aconselha o autor da Carta aos Hebreus: é preciso aproveitar a oportunidade única do “hoje” para permanecermos firmes na fé em Jesus e na sua compaixão, acreditando que só Ele tem o poder de nos curar integralmente.

Acompanhamento no discernimento da vocação: o trespasse do testemunho para o encontro com Aquele que anima, forma e envia

1 Jo 3,7-10; Jo 1,35-42

Hoje, João Batista assume o papel de animador vocacional. Depois de várias temporadas de pastoral vocacional na minha diocese, em que cumprimos o propósito de lançar sementes, entre a escuta e o discernimento, na sequência das visitas pastorais do bispo diocesano, esperaria que ficassem nas paróquias e arciprestados pessoas como este grande precursor que, simplesmente (e já não é pouco!) aponta Jesus que passa, incentivando a segui-l’O. Sucessos não são fáceis de constatar, se é que o objetivo da missão cristã é o sucesso aparente!!

Os formadores dos seminários sabem que os jovens que passam pela experiência da formação na comunidade não têm ali morada permanente. Passam os dias e ocupam-se com os métodos formativos num modo semelhante ao de João Batista: o de apontar o dedo para o Bom Pastor a Quem são convidados a seguir e a configurar as suas pessoas. À medida que os anos da formação passam, tem de acontecer este trespasse do testemunho para o verdadeiro encontro, que vai desde uma inicial resposta à pergunta de Jesus «Que procurais?», com a qual se crivam as motivações verdadeiras para a idoneidade vocacional, até ao morar com Ele e como Ele a caminho, por uma síntese vocacional afora e nunca terminada, por entre cidades e aldeias, num acesso gradual à experiência pastoral, cada vez mais animada pela amizade com Cristo e a partir da demora com Ele (no italiano “habitar” é dimorare = “demorar-se”).

Por vezes, analisa-se o convite de Jesus «Vinde ver» meramente como sendo o “apeadeiro” que é o Seminário, como se este fosse o único e o último destino do testemunho de quem diz «Encontrámos o Messias». Sim, é verdade que Jesus muda de tal maneira a vida de alguns que lhes muda o nome, certificando uma expropriação em favor da sua missão. Porém, a comunidade do Seminário ─ como se fosse só “um dia” (que terá as suas réplicas ao longo da formação permanente) ─ dá lugar a um outro trespasse, o fundamental, para que a lógica da vocação cristã funcione: sentir a tensão que existe entre o demorar-se com Jesus e o testemunho aos outros, que tem de ser cada vez qualificado, de modo que outras pessoas possam sentir-se motivados pelo conhecimento que lhes é dado acerca da convivência com Cristo. Sim, tanto mais faz sentido a experiência de uma demora com Cristo numa casa de formação, quanto, na medida do possível e organizável, pudermos fazer a gradual experiência de O anunciar aos que vivem fora.

No meio do testemunho, a palavra ocupa um lugar fundamental, ainda que não o único, uma vez que a coerência das atitudes a certifica ou contradiz. É comummente aceite pela comunidade científica que a palavra falada tem um poder criador. E porque é que o seu uso é de grande importância? Segundo descobertas recentes no campo da neurologia, o centro nervoso da fala no cérebro controla todos os outros nervos do corpo. O que dissermos e a forma como dissermos, irá ajudar ou prejudicar a forma como os outros lidam com o objeto da nossa comunicação. A língua é o menor membro do nosso corpo, mas pode dominar o corpo todo. É curioso que já a antropologia bíblica dizia isto, sem o acesso aos instrumentos de investigação que temos hoje!

João apresentou o «Cordeiro de Deus» a dois, ou seja, apontou par a mansidão de Deus presente em Jesus que é capaz de se compadecer e, inclusivamente, de «tirar os pecados do mundo» (algo inédito e escandaloso naquele tempo…). Como não podia aliciar aqueles dois a irem ter com ele imediatamente? E aqueles dois foram diretos à melhor possibilidade a respeito de Jesus, não só um encontro esporádico, mas “demorar-se” com Ele, naquele dia. E logo aquele encontro se multiplicou, com o testemunho de André a seu irmão Simão que veio a chamar-se Pedro.

A força criadora da palavra, no testemunho, pode ser colocada ao serviço dos propósitos de Deus, por aqueles que se habituaram a privar com Ele: prova disso é a eloquência com que fala João na primeira leitura acerca da semente divina que está naqueles que, não pecando, praticam a justiça do amor aos irmãos. Através do testemunho que damos na relação com os outros (dentro e fora da comunidade formativa), falamos-lhes da relação que temos (ou não) com Deus. Portanto, a história de uma vocação não precisa de muitas palavras, sendo que as que são ditas são essenciais, quer para descrever o encontro de cada um com Cristo, quer para atrair outros a um pessoal encontro com Ele, mediado pelo entusiasmo que é o Espírito de Deus que habita em nós.

   O Verbo de Deus nasceu segundo a carne uma vez por todas. Mas pela sua bondade e condescendência para com os homens, deseja nascer sempre segundo o espírito para aqueles que O procuram, e faz-Se menino que se vai formando neles à medida que crescem as suas virtudes. Ele manifestou-Se em proporção com a capacidade de cada um, capacidade que Ele conhece perfeitamente. E se não Se comunica com toda a sua dignidade e grandeza, não é porque não o deseje, mas porque conhece as limitações das faculdades recetivas de cada um. Assim, o Verbo de Deus revela-Se sempre a nós do modo que nos convém, e contudo ninguém pode conhecê-lo perfeitamente, por causa da grandeza do mistério.    Por isso, o Apóstolo de Deus, considerando a força do mistério, exclama sabiamente: Jesus Cristo ontem e hoje e para sempre, entendendo que se trata de um mistério sempre novo, que nunca envelhece para a compreensão da inteligência humana. (…) A Encarnação divina é um grande mistério e nunca deixará de ser mistério. Como pode o Verbo, que está em pessoa e essencialmente na carne, existir ao mesmo tempo em pessoa e essencialmente no Pai? Como pode o Verbo, totalmente Deus por natureza, fazer-Se totalmente homem por natureza, sem detrimento algum da natureza divina, segundo a qual é Deus, nem da nossa, segundo a qual Se fez homem? Só a fé pode apreender estes mistérios, a fé que é precisamente a substância e o fundamento das realidades que ultrapassam toda a perceção e raciocínio da mente humana.

São Máximo Confessor, abade, Dos “Capítulos”, distribuídos em cinco centúrias