“Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho” é apanágio (privilégio) da fidelidade criativa e do realismo esperançoso do Cristianismo

At 13, 46-49; Sl 116 (117), 1. 2; Lc 10, 1-9 ─ Na Festa dos Santos Cirilo e Metódio, copatronos da Europa

Já no século IX se viveu na missão da Igreja uma das tensões generativas hoje levadas a sério no discernimento sinodal que está presente hoje concretamente na Europa: a adequação das linguagens da comunicabilidade da fé à compreensão dos contemporâneos de diferentes culturas. Dentro da Doutrina Social da Igreja prefere-se falar da conceção analógica do ser do que da sua alternativa conceção unívoca. Esta deita por terra qualquer possibilidade de traduzir a mesma verdade em diferentes línguas para que chegue a um maior número, como é atributo do acontecimento do Pentecostes.

Os irmãos Cirilo e Metódio fizeram com os eslavos o que Tolkien fez com a comunidade pós-guerra: a criação de um alfabeto para transmitir os valores do Evangelho, de forma a que os mesmos fossem compreensíveis pela humanidade num determinado contexto. Apesar de aqueles dois irmãos terem traduzido o Evangelho e os textos litúrgicos (já naquele século!), foram considerados heréticos por não celebrarem Missa em latim, problema ultrapassado pelo Papa Adriano II, que lhes deu razão. O Apóstolo Paulo sofreu alto de parecido com a tradução para grego popular na evangelização dos gentios. Paulo dominava o chamado code-switching, isto é, passava de um a outro registo linguístico para evangelizar a um maior número. E os escritos dos cristãos C.S. Lewis e Tolkien valorizados com a linguagem do cinema! Portanto, uma linguagem inclusiva no caminho da verdade. Jesus já a utilizava, tendo várias formas de se expressar consoante o seu público (a todos em parábolas, em particular com explicações e exortações, etc.). É pena que as invejas geradas nestas tensões gerem equívocos que são veneno para a própria evangelização, que fizeram os santos Cirilo e Metódio sofrer uma forma de “martírio branco” (cf. Liturgia das Horas).

O Evangelho que Jesus convida a anunciar é o Evangelho da Paz. E todos somos poucos para o anunciar. E a primeira condição para que ele possa ser acolhido é haver “gente de paz”, quer dizer, pessoas com a predisposição para caminharem à luz dessa Paz enviada por Cristo. Depois, o método é “mais de Deus e menos de mim”. Não nos devemos perder em preciosismos e perfeccionismos que geram ansiedade (= traços insanos de personalidade ou tendências involuntárias que nos levam a comportar-nos ou a reagir de modo desproporcionado e que nos fazem dano a nós e aos outros), se quisermos ser anunciadores do Evangelho. É preciso curar e dizer que o Reino de Deus está perto!

Como aprendemos em Doutrina Social da Igreja, professamos a possibilidade de que ninguém seja excluído do anúncio da verdade que edifica e dignifica o ser humano. Como os gentios se encheram de alegria, glorificando a Palavra do Senhor proclamada pelo Apóstolo Paulo, que muitos homens e mulheres do nosso tempo possam ter acesso à verdade do Evangelho traduzida pela nossa maneira de viver que, como alguém dizia, para algumas pessoas será única forma a que lhe terão acesso. Não falar de forma a que as pessoas entendam é uma das sub-reptícias formas de indiferença e não há nada mais caro do que aquilo que somos chamados a facultar de graça.

Uma das formas de abuso de poder pode ser possuir a sabedoria e delimitar o caminho da mesma a um mínimo número de pessoas, codificando essa sabedoria para tirar proveito dela mais tarde. Fakenews não são só a veiculação de mentiras, mas também o encobrimento das verdades. Formas de desinformação que atrasam o desenvolvimento humano e as ações de amor que necessitam de ser praticadas em favor da sua dignidade. Se o nosso trabalho não tiver em vista o bem integral da pessoa e estiver mais preocupado pela defesa da instituição, acontecem as deepfakes, formas ainda mais graves e subliminares de controle religioso e social.

Anselm Grün, em “Poder, Uma força sedutora“, elencando como fontes a matéria, a origem, a maioria, o conhecimento, os sentimentos, a função, os contactos, as convicções, e os locais casa, mercado, castelo e templo, avisa-nos que tudo pode ser utilizado para convencer e levar a uma vida saudável ou, então, ser exercidos como poder que assusta as pessoas. A questão do poder, portanto, não se trata de saber se há poder ou não, mas como é que ele é exercido desde aquelas fontes e naquelas áreas da vida humana. Do ponto de vista pastoral, nunca se abusará do poder se se escutarem as pessoas e se for ao encontro da satisfação das suas necessidades mais básicas de humanização. Tudo o que for contra este alicerce será um abuso.

Numa das etapas da história da formação presbiteral encontramos uma tendência intitulada por Amedeo Cencini de “módulo único”, ou seja, o facto de um sacerdote se especializar numa determinada área da pastoral e defendê-la como absoluta, o que gera fragmentações da integralidade do que é ou deve ser a vida cristã. Não obstante o valor da especialização numa determinada área, que ajuda a aprofundar e a levar dons à prática, a falta de correspondência com as outras áreas pode levar à fragmentação do povo de Deus que se é chamado a servir como um corpo. A situação de um dom vivido numa tentativa obsessiva de profundidade, sem relação com Quem o doa na perspetiva da rentabilização em favor dos outros pode ser também considerada uma deepfake. Quem transporta boas notícias não deve ter medo de as traduzir no maior número de línguas possível, tendo, para isso, de pedir ajuda a colaboradores que traduzam.

Hoje celebra-se, a nível social, o Dia Internacional da Doação de Livros. Penso ser esta uma forma de ajudar as outras pessoas a fazer caminho para a verdade: oferecer livros bons, sobretudo que nos tenham feito crescer a quem os oferece.

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