Mt 5, 13-19; na Solenidade de São Martinho de Dume (Arquidiocese de Braga)

Em Braga, hoje, celebra-se a Solenidade de S. Martinho de Dume, bispo, Padroeiro principal da Arquidiocese.

As “letras pequeninas” dos contratos, que os advogados dizem que vão ficar maiores, para que possam ser bem lidas sem possibilidade de enganos, costumam ser assinadas sem que ninguém as leia, ficando-se quase sempre ou nunca por um pequeno resumo proferido por um intermediário. Com a Palavra de Deus e o contrato da Aliança que Ele realizou com a humanidade, por vezes, também pode acontecer que os pormenores fiquem sem serem lidos, estando contidos neles um bem maior que poderia despoletar um processo de mudança em favor de todos.

No Evangelho, Jesus diz-nos que no Reino de Deus é grande aquele que pratica e ensina os mandamentos. E sublinha que “antes que passem o céu e a terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra”. Transgredir, portanto, os mandamentos, por mais pequenos que sejam, leva a que o ensino sobre o reino de Deus fique coxo. Fica claro, no ensinamento de Jesus ─ o nosso máximo modelo de coerência ─ que a prática da Lei enobrece e dá eficácia o ensino da Lei. Já os nossos anciãos o dizem: “vale mais um bom exemplo do que mil palavras”.

Mas há uma coisa que me intriga entre estas afirmações de Jesus e o contexto em que elas são ditas, que me levam a revisitar o antes e o depois deste texto: acompanhamo-l’O no sermão da montanha em que Ele profere estas palavras após o discurso das bem-aventuranças. Para quem é que ele fala, agora, de forma radical quanto ao cumprimento da Lei: aos pobres, aos que choram, aos puros, aos perseguidos…? Sofrerão estes por não terem cumprido de forma exímia as leis ou porque alguém não cumpriu a Lei do Amor de Deus na prática como deveria de ser? No versículo 17, os biblistas não hesitam em afirmar que começa uma discussão severa contra os fariseus, que Mateus nos deixa relatado com num tom rabínico, uma vez que eles impunham a Lei aos outros e esqueciam-se de valorizar os pormenores da mesma Lei. Hoje diríamos: fixam-se na Lei de forma rígida e esquecem-se de cumprir e sugerir o espírito da Lei que é a Lei do Espírito de Deus e não dos pensamentos ou pretensões vãs dos homens.

Um exemplo de cumprimento da Lei de Deus ao pormenor: ser misericordioso. Outro exemplo: ser sal e luz. Provas destes exemplos de um cumprimento exímio da Lei até à pequenina letra são a Profecia de Ezequiel e o Testemunho de vida do Apóstolo. Cumprir até à pequenina letra implica não deixar de fora o mais pequenina possibilidade de a Lei de Deus favorecer alguém no seu crescimento, na proteção da sua dignidade, na sua inclusão comunitária, na defesa dos seus direitos mais fundamentais, na possibilidade de salvação eterna, etc. Até dar um copo de água, um litro de leite, um pão ou um medicamento ─ pensando em obras materiais ─ ou dar um minuto de escuta, fazer uma visita ou compreender a ferida de alguém, etc. ─ pensando em obras espirituais ─, pode exemplificar bem os pormenores da Lei a que Jesus dava e continua a dar importância.

Dentro do espírito do Evangelho, ser sal será ser integrador da diferença e ser luz é deixar transbordar a claridade do amor de Deus diante dela.

“O Senhor é meu Pastor, nada me faltará!” ─ Quem é que pode fazer esta exclamação? Todos os que quiserem deixar crescer dentro de si o ardor missionário, como aconteceu com São Martinho de Dume. Teve consciência de que o Bom Pastor nunca abandona as ovelhas enfraquecidas e, por isso, foi-lhe fiel ao não fugir à responsabilidade do cuidado para com os distantes. Este pastor da Igreja veio de longe (originário da Panónia e depois de ter crescido na Palestina) para as periferias não só geográficas, mas sobretudo existenciais, tendo em conta cidadania da fé. Destacou-se na luta em favor da erradicação de práticas pagãs, nas comunidades católicas. Assim foi o combate de São Paulo e todos os batizados, acompanhados pelos pastores que o Senhor coloca diante e a caminhar com eles, somos convidados a ter como garantia da mesma graça tão nobres testemunhas.

Ao convidar a Igreja para uma nova etapa evangelizadora marcada por aquela alegria de Cristo que enche o coração de quem se encontra com Ele, e que precisa de ser partilhada, o Papa Francisco revive a mesma profecia de Ezequiel. Na exortação apostólica “A Alegria do Evangelho” indica-nos caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos, precisamente para que aquela profecia que antecipa a encarnação do Evangelho que é Cristo, não deixe de se realizar também em nós e em todos os seres humanos nossos contemporâneos. No contexto do Dia Mundial das Missões que comemoramos neste fim-de-semana, o Santo Padre aponta a novos horizontes «geográficos, sociais, existenciais» para as comunidades católicas, afirmando:

Não existe qualquer realidade humana que seja alheia à atenção dos discípulos de Cristo, na sua missão. A Igreja de Cristo sempre esteve, está e estará ‘em saída’ rumo aos novos horizontes geográficos, sociais, existenciais, rumo aos lugares e situações humanos ‘de confim’, para dar testemunho de Cristo e do seu amor a todos os homens e mulheres de cada povo, cultura, estado social. (…) Exorto todos a retomarem a coragem, a ousadia, aquela parrésia dos primeiros cristãos, para testemunhar Cristo, com palavras e obras, em todos os ambientes da vida. (…) A missão realiza-se em conjunto, não individualmente: em comunhão com a comunidade eclesial e não por iniciativa própria. (…) O cuidado pastoral dos migrantes é uma atividade missionária que não deve ser descurada, pois poderá ajudar também os fiéis locais a redescobrir a alegria da fé cristã que receberam.

Ler Mensagem do Santo Padre na íntegra
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