Religião ritualmente forçada, vida praticamente relaxada. A serenidade fabrica a coerência e a comunhão espiritual
No Evangelho de hoje, Jesus mostra-nos detestar duas coisas, porquanto dissipam em nós a consciência da criaturalidade e da filiação divina, das quais depende a vivência da fraternidade universal. São elas: a divergência entre a realidade e a aparência, e a incoerência entre o que se diz e o que se pratica. Ele falava aos fariseus e um dos doutores da Lei sentiu-se insultado (sofreria de narcisismo reativo, o pior dos narcisismos que defende a própria pele com a saliência do mal dos outros). É quase sempre assim: as pessoas cuja aparência externa não é transparência da sua realidade interior costumam ser autoritárias no que dizem e ser pouco exigentes no que fazem.

No dia de ontem (11 out. 2022), foi oportuno celebrarmos a memória de São João XXIII, na ocasião em que comemorámos os 60 anos da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II (11 out. 1962). No seu discurso de abertura, o “Papa bom”, diante dos problemas enfrentados pela humanidade, garante-nos que “a Igreja é mãe amabilíssima de todos os homens” e que prefere ajudar a lidar com as enfermidades causadas pelas circunstâncias da sua atualidade com “a medicina da misericórdia” em vez das armas do rigor ou recorrendo às condenações. Desta forma, a Igreja foge do perigo de ser farisaica ou doutora da Lei. Jesus não veio impor à humanidade fardos insuportáveis, mas apresentar-Se como Aquele que é manso e humilde de coração, em cuja carga leve podemos encontrar alívio para as nossas almas (cf. Mt 11, 28-30).
Fazer da vida e da prática religiosa uma questão aparente, forçada, não ajuda a viver a espiritualidade de forma serena na vida prática. É quase sempre assim: religião ritualmente forçada, vida praticamente relaxada. Passar a vida a fingir e a representar aquilo que não se é, com muito exibicionismo e cosmética, rouba a serenidade precisa para viver conforme os preceitos de Deus que é justo e bom para com todos, amando e perdoando. A melhor resposta que Lhe podemos dar é receber o seu amor salvador, traduzido no perdão e graça enriquecedora, e traduzi-lo na própria vida nas relações interpessoais. São Paulo parece vislumbrar, ao falar da disparidade entre as obras da carne e os frutos do Espírito, que é mais útil deixarmo-nos conduzir pelo Espírito de Deus do que pela Lei de Moisés, que era resposta à clareza do coração humano. Viver segundo a Lei coloca-nos no ciclo vicioso que é a alternância entre a obrigação e a compensação. Viver segundo a graça de Deus proposta pela Nova Aliança, “crucificando a carne” diante das paixões e apetites, ajuda-nos a colocar a vida corporal ao serviço da vida espiritual que nos faz frutificar a plenitude da vida. Há que fugir a todo o gás de leis sem Espírito e viver segundo o espírito das leis! Só Deus é que verdadeiramente nos pode julgar com justiça amorosa.
Integração pisco-espiritual:
Viver constantemente numa viagem longa entre a realidade e a aparência, assim como pactuar com um autoritarismo pouco altruísta é a melhor encruzilhada por onde se forjam neuroses e, até, se alimentam certas psicoses. Assumir-se como se é diante de Deus e procurar um interlocutor humano à altura do da realidade do que somos, pode ajudar a conquistar aquela transparência e consistência que permite viver a unidade de vida, não obstante os traços da história individual, cujos fatores, sejam eles positivos ou porventura traumatizantes, nunca têm a última palavra. A vida cristã, e sobretudo na sua dimensão institucional, não pode servir para alimentar psicoses ou provocar neuroses, mas ajudar de forma personalizada a integrar os temperamentos através do trabalho sobre os carateres. Só na contemplação da história e no diálogo terapêutico é que isto pode acontecer, ajudando a pessoa a ter um só rosto na família, na escola, na paróquia, no trabalho, no grupo dos amigos, com os desconhecidos, etc.