O que aconteceu entre os irmão Caim e Abel repetiu-se e repete-se hoje em dia entre os irmãos de sangue e de humanidade. Na interpretação do texto de Gn 4, é básico afirmar que a criatura que põe de lado o seu Criador, substituindo-O, mais tarde ou mais cedo acaba por cometer algum tipo de “fratricídio”. Quem é contra a linguagem da “fraternidade universal” acaba por esconder um certo ressentimento “caínico” (relativo a Caim). E a culpa nem está em Deus, nem em Abel. Como Jesus referiu, não é o que está fora que torna impuro o ser humano, mas o que sai de dentro do seu coração (cf. Mc 7,15).
O hábito de rezar os Salmos na Liturgia das Horas poupou muitos clérigos e religiosos, que a devem rezar por dever, e muitas outras pessoas de cometer “fratricídios”, pelo menos, através de palavras ou ações de algum modo “mortíferas”. Rezar salmos é como “oferecer sacrifícios de louvor”, quer a vida corra bem, quer a vida corra mal. Com as bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12), Jesus garantiu-nos que qualquer ponto de partida menos bom pode ser um início de superação e caminho para uma vida bem conseguida.
Temos vindo a acompanhar o debate entre a obsessão dos escribas e fariseus pela observância das Leis (sem revisão, nem discernimento, nem confronto) e a autoridade divina das palavras e modo de proceder de Jesus. Para Jesus há o completar da lei para viver em plenitude, desde o coração; para os escribas há um mero cumprimento externo da Lei. Para os escribas vale a lei sem Deus; para Jesus, o Pai é o princípio de toda a lei. Excluir Deus como fonte inesgotável de vida que se renova e nos renova constantemente é excluir os outros como irmãos de uma mesma família, criando grupos ou estratos sociais. A este respeito, infelizmente, não é difícil constatar que a afirmação de classes sócio-económicas se projeta na Igreja criando e defendendo a existência de grupos. Pode afirmar-se que é uma forma mais fácil de viver o Evangelho, mas na verdade, o motivo principal é a influência social, o Evangelho viria depois. Ora, se o Evangelho não vier primeiro, Deus e os irmãos ─ que Jesus coloca ao mesmo nível de avaliação moral ─ ficaram em segundo plano, reservando-se para primeiro os interesses pessoais ou grupais. Nestes grupos, é evidente a obsessão por “sinais” que não são os “sinais dos tempos” a que se refere o Magistério da Igreja, mas os identificativos ou patenteadores da pertença a um certo grupo. Ocupados que estão na autorreferencialidade, desde a autossuficiência, não perceberão dos sinais que Jesus possa realizar entre todos. A este respeito, a pastoral da Igreja segue/deve seguir outro sentido, mesmo que a partir de dinâmicas de grupos.
Jesus convida os discípulos a deixar essas margens, subindo para o barco da Igreja, chamada a renovar-se e a purificar-se das tendências sociais que desumanizam, e a partir para outra margem. Esta margem, apoiada no Evangelho e refletida hoje à luz do Espírito Santo, sob a autoridade reconhecida do Magistério da Igreja, põe de lado todo o tipo de ações que possam ferir a humanidade, toda a humanidade. Não basta tender a gostar de toda a Bíblia e de todo o Magistério e, depois, não amar toda a humanidade. Deus está acima de todos nós e não O podemos adorar só a pensar numa parcela de humanidade, nem mesmo deixando de fora os inimigos (cf. Mt 5,44).
Na abertura da assembleia sinodal em Praga, Tomáš Halík, na sua introdução espiritual, aconselha que
A Igreja precisa de aliados, se souber abordá-los sem arrogância. Se a Igreja quer contribuir para a transformação do mundo, tem de se transformar a si mesma de modo permanente. (…) O lado negro da globalização está a manifestar-se hoje. Pense-se na propagação global da violência, desde os ataques terroristas aos Estados Unidos em 2001 até ao terrorismo de estado do imperialismo russo e ao atual genocídio russo na Ucrânia; pandemias de doenças infeciosas; a destruição do ambiente natural; à destruição do clima moral através do populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e fundamentalismo religioso.
Convocando a figura do jesuíta Teilhard de Chardin (1881-1955), chamou-o um dos primeiros profetas da mundialização, para quem
a única força que une sem destruir” não é o progresso ou o desenvolvimento, mas o amor, tal como surge testemunhado nos evangelhos.
Halík acredita que este é, assim,
um momento decisivo, a viragem do cristianismo para a sinodalidade, a transformação da Igreja numa vibrante comunidade de peregrinos, que pode ter impacto sobre o destino de toda a família humana. (…) Será que o cristianismo europeu tem hoje a coragem e a energia espiritual para evitar a ameaça de um ‘choque de civilizações’, transformando o processo de globalização num processo de comunicação, partilha e enriquecimento mútuo, numa civitas ecumenica, uma escola de amor e fraternidade universal?
A proteção do Senhor paira sobre o Caim de todos os tempos, não obstante o ato que o fez desertar da primeira experiência de fraternidade a que poderíamos chamar de “umbilical”. Doravante, com a experiência da memória do mal feito, num ímpeto de conversão livre para o bem proposto, somos todos chamados a (re)construir a fraternidade universal.