Nem trocar a humanidade pela animalidade, nem dividir os humanos entre sujeitos e objetos
A Palavra de hoje faz-me regressar ao Twitter em que D. Manuel Linda publicou a seguinte afirmação:
Todos os contactos e relacionamento criam especiais laços de amizade. Mas os laços de sangue entre pais e filhos possuem uma tal força que nada os desfaz. Nunca os substituamos pelo apego a um qualquer animal de estimação, típico das sociedades decadentes.
D. MANUEL LINDA, Twitter
No site da sua diocese publicou uma reflexão sobre “Laços“, onde nos faz contemplar uma disparidade “de culto” entre relacionamentos familiares e relacionamentos com animais, “para desgraça de quem troca a humanidade pela animalidade”. As afirmações provocaram reações que se podem ler no Expresso.
Do tempo de Jesus para o nosso tempo, o contexto pode ter mudado muito, mas os problemas humanos continuam os mesmos. Mudou a forma de reação dos adversários de Jesus: outrora envergonhados pelas suas afirmações/mais tarde morto; hoje-em-dia, seria ridicularizado/outra forma de “morte”.
No seu recente artigo sobre Antropocentrismo, publicado no Ponto.SJ e republicado pelo Observador, o teólogo João Duque reflete:
Assumindo configurações próximas aos denominados estudos decoloniais, feministas e antirracistas, assim como à base teórica de muitos movimentos ecológicos, estas formas de pós-humanismo pretendem afirmar a inserção dos humanos na rede de relações que inclui todos os agentes planetários, com especial relevo para o conjunto dos seres vivos. Para isso, na maior parte dos casos, assume-se a realidade contínua da vida como base de todos os existentes, nas suas diversas configurações. Nesse sentido, as diferenças que possa estabelecer-se entre os seres vivos serão secundárias relativamente à sua pertença comum ao processo vital que tudo atravessa, como fluxo autorregulado e autopoiético. Trata-se, portanto, de um biocentrismo (ou zoocentrismo) fundamental, ou de um vitalismo monista de base, que relativiza todas as diferenças entre humanos e não humanos.
DOUTOR JOÃO DUQUE
O humanismo, se alicerçado na antropologia bíblica, poderá navegar até a um porto seguro, onde se vivem os valores da fraternidade, da justiça e da paz. Se, por outro lado, foge a um sério confronto com a antropologia bíblica, transforma-se num antropocentrismo que vai mudando de “pele” com camadas históricas que nos mostram vários desvios daquilo que se poderia sonhar, à luz da Sagrada Escritura, ser a experiência da dignidade humana. O próprio João Duque resume que “este paradigma, que considera os humanos como proprietários do resto do mundo, estende-se à relação entre os humanos, acabando por definir uns como sujeitos e outros como objetos”.
Jesus denuncia este desvio na pessoa do chefe da sinagoga que não aceitava que Jesus pudesse livremente curar aquela mulher doente havia 18 anos, que curvada não podia endireitar-se. Era obrigada, em dia de sábado, em que se deveria celebrar a dignidade humana, sob o jugo daquela doença. Já os bois e jumentos podiam, em dia de sábado, ser levados pelo seus donos a saciar-se.
A alegria da multidão é fruto deste sinal há muito esperado, da libertação de uma lei que subjugava em vez de libertar do que desdignifica a vida humana. Obviamente, ser humano não pode implicar o mau trato de animais domésticos e da natureza, pois todos fazem parte da criação. Também isso desdignifica a vida. Porém, acontece o contrário e frequentemente: políticas ideológico-económicas ou postulados religiosos pouco fundamentados que favoreçam menos o ser humano que os animais domésticos.
Quando o Apóstolo Paulo exorta aos Efésios “Irmãos: Sede bondosos e compassivos uns para com os outros e perdoai-vos mutuamente, como Deus também vos perdoou em Cristo” está a prefigurar o que já refletíamos acima: não faz sentido uma humanidade em que uns se sintam sujeitos e outros se sintam objetos. Frequentemente, o apego afetivo a animais domésticos significou um desapego de seres humanos, por causa de “imoralidades, impurezas, avareza, palavras indecentes, estultas ou maliciosas” provocadas por eles.
O caminho? Ser “imitadores de Deus, como filhos muitos amados”, como se canta no Salmo de hoje, o primeiro do Livro dos Salmos. O modelo de imitação está acima de todo e qualquer ser humano, porque a semelhança que há a procurar restaurar é com a imagem verdadeira de Deus. A glória de Deus é o homem vivo! Por isso, quer seja sábado, quer seja domingo, a prioridade é defender o que dá vida, ali no equilíbrio por entre os extremos que são as dependências afetivas e as autonomias exacerbadas.
Hoje, rezo para que educadores e pastores se unam num modelo educacional e formativo integral, não se contentando com o que certas ideologias postulam ao sabor do tempo ou segundo um modelo económico vigente.