Jo 3, 13-17; Filip 2, 6-11; Num 21, 4b-9 ─ Festa da Exaltação da Santa Cruz
Este ano celebramos a Festa da Exaltação da Santa Cruz após a Cruz das Jornadas Mundiais da Juventude, unida ao ícone de Nossa Senhora Salus Populi Romani, estar a passar ou ter passado pelas nossas dioceses portuguesas. O entusiasmo com que estes símbolos foram acolhidos, demonstra, por um lado, a fé e a devoção das nossas comunidades e, por outro, a estranheza com que muitos cidadãos observaram jovens em idade e em espírito a carregar este símbolo central para a nossa fé.
No Evangelho desta Festa, contemplamos o diálogo de Jesus com Nicodemos, que podemos dissecar em duas partes: uma que nos mostra como a pessoa chega à salvação e na outra como a salvação chega à pessoa. A liturgia da Exaltação da Santa Cruz coloca-nos nesta segunda perspetiva, de uma oferta da salvação à humanidade por parte de Deus. De facto, é como Jesus diz: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (vv.16-17).
A Cruz de Cristo ou a sua exaltação, na verdade é um atrativo e não um repelente. Prova isso a presença minoritária de cristãos em países como o Cazaquistão, que está a ser visitado pelo Papa Francisco, em que os católicos são 1% da população, de maioria muçulmana (70%, entre outras religiões e confissões de fé). A Irmã Cláudia, de origem colombiana, que ali vive com a sua comunidade religiosa num lugarejo rural, dá-nos um belíssimo testemunho de diálogo e amizade social:
Uma das mais belas experiências pelas quais ela é grata é o convite de qualquer família, independentemente da religião, para abrir as portas de sua casa. Em uma ocasião, ela estava com um professora muçulmana, que lhe disse que cada visita a eles é a presença de Deus. “Realmente nos fala de um sinal profundo do Pai, que está presente no povo”, afirma. Os diálogos são muito abertos, pois acontecem com a profunda convicção de que somos todos irmãos e irmãs, como diz o Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti, que em cada indivíduo “a presença de Deus existe de maneiras diferentes, com invocações diferentes”. “Sentir que há espaço para o diálogo, não de medo, ajuda muito. Estas são belas relações que estão se formando”. “As pessoas são muito pacientes, muito simples, isso ajuda muito; nos fala de um espírito de acolhida, um desejo de diálogo, de entrar em uma relação”, assegura ela.
─ VATICAN NEWS
Numa hora em que é preciso “evitar a acentuação de rivalidades e o reforço de blocos contrapostos”, o Papa Francisco aproximou-se do Cazaquistão para “para amplificar o clamor de tantos que imploram a paz, caminho de desenvolvimento essencial para o nosso mundo globalizado”, convencido de que “a fonte do sucesso é a unidade”. No meio de um ambiente multirreligioso, sugere o “serviço concreto ao povo” como a “resposta mais eficaz a possíveis extremismos” (cf. RR).
Na cruz gloriosa, Jesus não só expressa o máximo da sua doação, fruto do seu arrebatamento, mas também exerce o seu máximo poder de atração. É curioso que o Apóstolo Paulo tenha dito no seu hino cristológico que, no assumir-Se da condição de servo, Jesus tornou-Se semelhante aos homens. Quererá dizer que os homens também se podem tornar semelhantes a Ele pela obediência ao Pai!
Através da sua cruz gloriosa, Jesus amplifica e supera quer o alimento do exílio, onde os hebreus punham todo o seu desejo, quer o remédio do deserto, que Deus recomenda a Moisés para significar corporalmente o restauro da aliança danificada pela desobediência a Deus. O diác. sírio Santo Efrém, doutor da Igreja, reflete que nesta “ponte lançada sobre o abismo da morte” Cristo
é o glorioso «filho do carpinteiro» (Mt 13,55), que, no carro da cruz, desceu à voraz garganta da morada dos mortos e transferiu o género humano para a morada da vida (cf Col 1,13). E, se pela árvore do paraíso o género humano caíra na morada dos mortos, pela árvore da cruz passou para a morada da vida. Naquele madeiro, fora enxertado o azedume; neste, foi enxertada a doçura, para que nele reconheçamos o Senhor a quem nenhuma criatura pode opor-se.
─ SANTO EFRÉM, Homilia sobre Nosso Senhor
Na sua recente Carta Apostólica Desiderio desideravi (“Desejo ardentemente”), o Papa Francisco não quer entrar em “guerras litúrgicas”, mas, pelo contrário e evidentemente influenciado pelo teólogo Romano Guardini, pretende personificar a dinâmica de atração patenteada pela exaltação de Cristo na Cruz:
Ninguém tinha ganho um lugar para aquela Ceia. Todos foram convidados ou, melhor, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem de comer aquela Páscoa com eles: Ele sabe que é o Cordeiro daquela Páscoa, sabe que é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta daquela Ceia, a única verdadeira novidade da história, que torna aquela Ceia única e, por isso, “última”, irrepetível. Toda via, o seu infinito desejo de restabelecer a comunhão connosco, que era e continua a ser o projeto originário, só poderá ser saciado quando todos os homens, de todas as tribos, línguas, povos e nações (Ap 5, 9) comerem o seu Corpo e beberem o seu Sangue: por isso aquela mesma Ceia se tornará presente, até ao seu regresso, na celebração da Eucaristia.
─ PAPA FRANCISCO, Desiderio desideravi, n. 4
Tudo começa com o desejo de Deus; resta que aqueles que frequentam este memorial se deixem encantar, a ponto de possibilitar uma revolução da ternura que aproxime a humanidade de Deus. Reparemos como tantas vezes certas as celebrações da liturgia serviram de repelentes (a ver por um certo “divórcio” entre Catequese e Liturgia e pela estatística de participação dos batizados, afetada também pela pandemia, em Portugal menos de 20% dos 80% de batizados). Significa que o primeira ato a cumprir por parte dos católicos é “render-se ao seu amor, deixar-se atrair por Ele” (n. 6) a pontos de O poder levar aos outros (cf. PONTO.SJ).
O testemunho daquela Irmã colombiana mostra como, a partir de uma convivência simples, os jovens têm sido atraídos à Eucaristia e aos outros sacramentos. Na sua Carta Apostólica, o Papa Francisco garante que há uma desproporção entre a imensidade do dom oferecido por Deus e a pequenez de quem o recebe. Não obstante esta pequenez e a incompreensão do mistério, os Apóstolos foram convidados a transmiti-lo a todas as gerações.