Na casuística farisaica, o inocente é transformado em réu para distrair atenções; na misericórdia divina, o mal é extirpado da pessoa culpada

Dn 13, 1-9.15-17.19-30.33-62; Jo 8, 1-11

A história de Susana faz-me lembrar todos os acusados inocentes, os de agora e de outrora, que não pactuam com propostas indecentes. E antes que “o feitiço se volte contra o feiticeiro”, infelizmente, o veneno sai da boca da cobra, procurando projetar o mal sobre alguém.

Daniel é, na sua voz de ancião jurisprudente, prefiguração de Cristo que, contra todas as leis da proporção moral, põe fim à ignomínia que é confundir o pecado com o pecador (a mulher surpreendida em adultério), diante daqueles que distinguiam a realidade da aparência (os fariseus e doutores da lei). Reparemos que o evangelista diz “mulher surpreendida em adultério” e não “mulher adúltera” como frequente e farisaicamente se diz. O adultério é um pecado, não um ser humano. É uma ação humana a evitar, contanto que não se mate o ser humano. São louváveis e corajosas, a este respeito, no decorrer da reflexão sobre os abusos, as reflexões de uma tentativa de jurisprudência onde se espelham os textos da Liturgia de hoje.

São Filipe de Néri costumava dizer “L’uomo da solo non ce la fa”, traduzindo: o ser humano, sozinho, não consegue fazer este tipo de mal. Talvez ele estivesse a fazer alusão às estruturas de mal que já se incrustaram nas instituições humanas. A respeito da origem dos abusos sexuais, é útil a alusão que Amedeu Cencini faz à perspetiva sistémica-estrutural de Gauss:

Nas pontas estão duas minorias: uma minoria escandalosa e uma minoria virtuosa. A grande curva pertence a uma maioria medíocre. O autor desta perspetiva propõe que esta maioria medíocre é o ninho onde se nascem os abusadores.

Mas ainda há uma coisa intrigante a meditar: aqueles fariseus não querem só atingir aquela mulher apanhada em pecado. Querem atingir o Mestre. Nas acusações anónimas que temos vindo a observar quanto aos abusos sexuais e na forma agressiva que se tem vindo a usar, mesmo afirmando que as vítimas devem estar em primeiro lugar, no centro das atenções e cura, o que parecer estar a ser atacado é o sacerdócio ministerial, não como figura decorativa (que alguns católicos se prezam de querer ter), mas como profecia para o tempo atual, numa Igreja que se quer em renovação.

Moral da história: o farisaísmo pode ser também uma tendência para a nidificação de vários tipos de abusos. Não tem que ver meramente com religião, como esta também não serve de argumento para a justificação de guerras. É uma questão da formação das consciências e da educação dos comportamentos. Como discípulos-missionários de Jesus Cristo, somos chamados a defender com coragem (“parresia”) a cultura do respeito para com o mistério da pessoa humana. Cencini chama ao “respeito” o elemento germinativo positivo que deve crescer, a par da atenção na prevenção dos abusos.

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