Misericórdia é, inequivocamente, a “torneira” da paz
A profecia de Daniel ajuda-nos a tomar consciência de que, não obstante sermos guiados pela Palavra do Senhor anunciada pelos profetas e pelos apóstolos, não estamos livres de praticar ações que façam sentir a vergonha sobre os nossos rostos. Ao mesmo tempo, a profecia manifesta a consciência de que, não obstante essas más ações, no Senhor Deus está a misericórdia e o perdão.
Nestes tempos que estamos a viver, em que se faz sentir uma certa descredibilização da Igreja por causa dos abusos sexuais e da forma como se está a lidar com a resolução dos mesmos, faz-nos bem proclamarmos o Evangelho de hoje. Tenho intuído que está a acontecer uma espécie de Inquisição ao contrário. E creio que se esta não tivesse acontecido e deixado as suas “mazelas” ideológicas na sociedade, pelo menos a forma como se está a abordar a Igreja na questão dos abusos seria outra.
O trecho evangélico de hoje, na sequência do convite de Jesus a amarmos os nossos inimigos, constitui um convite a superar qualquer condenação dos outros. A afirmação teologal ─ “sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” ─ identifica-se com a sua face antropológica ─ “como quereis que os outros vos façam, fazei-lho vós também”, como parte unânime de um modelo operativo decisivo para a evangelização.
Nos Comentáros à Bíblia Litúrgica (Assafarge: Gráfica de Coimbra 2, 2007), encontramos um estudo interessante desta passagem, lembrando-nos que a mesma se situa no coração do Evangelho e mostrando-nos Jesus a revelar o verdadeiro sentido de Deus e da vida dos homens. O autor ajuda-nos a refletir como o judaísmo tinha uma norma de justiça segundo a qual cada um havia de ser tratado de acordo com as suas obras; e no marxismo, a aceitação da dialética da revolução, na qual se inseria a necessidade de superar ou até, mesmo, destruir o inimigo para se alcançar a harmonia final. Nas políticas do mundo, sacrifica-se o bem dos pobres (que são muitos) pelo interesse de grupos minoritários. A tendência do egoísmo leva a amar os outros apenas na medida em que representem um valor para a minha vida. Diante destas conceções, a atitude de Jesus que demarca o Evangelho é de uma nitidez e força arrepiantes: “Amai os vossos inimigos”. As tendências apontadas acima não são absolutas. Ainda há pouco tempo, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou o carta “Placuit Deo” (sobre alguns aspetos da salvação cristã) para deixar claro como o individualismo e o desprezo do corpo são duas máscaras de heresias antigas (o gnosticismo e o pelagianismo).
Só é absoluta a urgência de semear o bem, amar sem procurar resposta, dar sem esperar recompensa, pagar com o bem os males recebidos. É tão estranhamento distinta esta forma de entender o amor, que os primeiros cristãos introduziram na linguagem grega uma palavra nova para o exprimir: “ágape”. E é por esta atitude que se caminha para a plenitude humana, nunca diminuindo os outros, seja quem for…
Portanto, a Igreja não é uma empresa, nem uma organização não-governamental ─ estamos sempre a ouvir esta verdade. No entanto, por vezes funciona como se fosse. A comunidade da Igreja é governada pela Trindade e por um desígnio maior de amor ultramundano que não descarta ninguém. Tenho por certo que o remédio para as feridas que a Igreja está a sofrer (internas e externas) está na sinodalidade. Ainda não é tarde, porquanto o melhor remédio muitas vezes só se encontra enquanto as feridas estiverem abertas. A parábola do Bom Samaritano tem nesta hora um significado mais realista, dando conta que é um estrangeiro que cuida do Cristo (e de quem o representa) que está caído no chão. Deixemos que ele O leve ao estalajadeiro. Deixemos de ficar meramente presos às sacristias. Os adros que nos fazem adentrar nas igrejas são os mesmos espaços que nos fazem adentar na vida e relacionamentos quotidianos com uma nova atitude.