O sacramento da quaresma: a verdadeira fome só Deus é que a pode saciar
Gn 2, 7-9 – 3, 1-7; Rm 5, 12-19; Mt 4, 1-11 | I Domingo da Quaresma
Acho curioso que Mateus nos diga que Jesus só teve fome depois de ter jejuado durante quarenta dias e quarenta noites. Não há informação de que Jesus fosse obeso, de forma a que o seu corpo passasse a consumir a si próprio passado a poucas semanas, que é o tempo em que se pode passar sem comida. Quanto à água, o corpo apenas pode passar sem ela alguns dias. Acresce, ainda, a desidratação do corpo por causa do calor do deserto. Sendo assim, de que fome estaremos a falar?
Imagino que a fome a que Mateus se refere já tenha ultrapassado a das necessidades básicas, passando à significação de sentido fundante e último da vida. E é aqui que o diabo se mete com mais astúcia. As tentações de Jesus, de acordo com os textos citados do Antigo Testamento (Dt 8,3; Sl 91,11s; Dt 6,16; Dt 5,9; Dt 6,13), condizem com as tentações do povo eleito do Antigo Testamento na sua caminhada de quarenta anos pelo deserto. Já ali, o Inimigo tinha feito tentativas para desviar o povo da Terra prometida. Quanto a Jesus, Satanás sabe que não tem muitas tentativas, até à Salvação definitiva, embora estejamos só no início da vida pública de Jesus.
Tudo nos leva a crer que aquela “fome” se reporta a algo que só Deus pode saciar: a daquela consciência da identidade de filiação divina, celebrada no Batismo. E o demónio quer-se passar por deus precisamente aqui, de onde tudo o resto deriva para o bem ou para o mal. Pode tratar-se, comparativamente a todo o ser humano, de uma situação de desespero, de frustração, de desgaste excessivo, em que as perguntas mais graves se colocam nas tribulações. É preciso uma sobredosagem de coragem e de fé para não se deitar tudo a perder. Não se trata de um pedaço de pão, de uma mera sensação de proteção ou ou de um conforto na solidão. Sim, são necessidades básicas, cuja falta é interruptor que liga questionamentos mais profundos: o confronto com o nada, o vazio existencial, a morte, no momento ─ o início de uma vida pública ou o princípio de uma “carreira” ─ em que seria suposto tudo dar certo, em que o sucesso deveria bater à porta, em vez de… tentações no deserto.
Recordemos que foi o Espírito ─ o Amor com que o Pai rasgou o céu no dia do Batismo no Jordão ─ que conduziu Jesus àquele retiro duro, a que pouco se assemelham os nossos exercícios espiritusais, por mais que o queiramos reproduzir. Portanto, Jesus parte para ali com uma declaração forte do amor incondicional do Pai para com Ele. Jesus tem 30 anos e poderíamos dizer que as suas necessidades básicas já foram abundantemente “preenchidas” com a ajuda da Família de Nazaré. De que se tratará agora?
Diria humildemente que se trata de aperfeiçoar ou completar a Lei e não seguir o caminho dos escribas. Jesus tinha de se preparar neste grande retiro para ler o Antigo Testamento de forma a apurar o seu sentido profundo, não se deixando ficar à superfície. Tratava-se de tomar uma direção inédita, que devolvesse a esperança ao povo de Israel oprimido, não obstante as várias tentativas de encontrar a terra prometida que, desde agora, passa a ter uma “margem” não meramente terrena como horizonte.
Neste deserto, Jesus restaura a aliança que o Povo a caminho não foi capaz de levar a cumprimento: a de fugir da lógica do mundo, de um messianismo espetacular, utilizado em proveito próprio. Na Igreja e não só no mundo, ainda estamos a atravessar este deserto. Precisamos de fazer mais do que ler a Palavra de Deus sem cumprir a vontade de Deus. É preciso discernir se o que queremos é Deus que o dá. Porque se é Ele que o dá, serve para responder à vocação na missão; senão, não serve. Só é possível sair vitoriosos nas provações mantendo-nos fiéis à vontade de Deus, porque só esta é digna de confiança.
Há não quarenta dias, mas um ano, que a Ucrânia vive uma quaresma, à espera que chegue o terceiro dia pascal. Até quando, Senhor? Recebemos testemunhos de “guerreiros” da defesa não só de um país, mas também da identidade de filhos de Deus, demonstrada pela resiliência na oração. São, hoje, sinal de Jesus Cristo para nós!
Doravante, a saciação da fome de Batismo não deve ser negada a ninguém, alternativamente ao risco de se vir a escolher fundamentar a vida em escolhas que a diabolizam/separam do seu verdadeiro sentido. Preparar mediante a declaração do desejo e acompanhar. Nunca negar o acesso a esta fonte! O contrário faz-nos cúmplices da morte eterna!
Um busca de identidade humana e eclesial apostada na diferenciação diabólica – por exemplo a de quem busca exclusivameente apoiar-se num Pontífice em particular ou num tipo de espiritualidade em particular, em detrimento de outros – seria o mesmo que apoiar o divórcio matrimonial sem razões de nulidade. Este tipo de busca de esclarecimento de identidade que diverge em totalitarismos nunca será totalizante, porque é o homem a tentar governar-se só a tentar comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Todos somos convocados, sem exclusão, a alimentarmo-nos da árvore da vida, acessível a todos e não é patente exclusiva, mas inclusiva. É Deus que quer ser tudo em todos. De ouro modo não haveria missão. Jesus, por estas sendas do deserto quaresmal sede o nosso guia e proteção.