A prática da justiça e a santificação do tempo são inseparáveis

Is 58, 9b-14; Lc 5, 27-32

À medida que vamos escutando a profecia de Isaías, vamos dando conta de que, contra qualquer dicotomia que possa insinuar-se a relação entre culto e caridade, a prática da justiça de Deus é inseparável da santificação do tempo. Estes dois modos de existir cristãos entrelaçam-se ao longo do texto de uma maneira harmoniosa. A prática da caridade cura e dá vigor; a santificação do Dia do Senhor dá-nos acesso à herança prometida.

Não praticar a caridade para com os necessitados leva a murmurações que não são mais do que auto-justificação pelo bem que não se quer fazer, apontando para o mal dos outros. Não raramente, pessoas como os escribas não separam o pecado do pecador, o erro da pessoa. Desta forma, alteram a definição do valor da pessoa, por causa da apreciação do que a pessoa faz ou não. Jesus, utiliza a metáfora da medicina e do paciente para nos fazer compreender a importância e a urgência de curar os pecadores.

O pêndulo que determina se somos ou não misericordiosos é o que oscila entre a função e a missão: a função determina o bem que eu faço a pensar em mim, ao passo que a missão é determinada pelo bem em si. A missão é de fundamentação cristã; a função é mera atividade humana. Qualquer pessoa pode fazer esta ou aquela função, dependendo das suas qualidades naturais. A missão é reservada só a quem parte de Cristo, implicando um posicionamento acima das forças humanas, como é o amor aos inimigos, o chamamento e a atenção às pessoas marginalizadas, etc. A missão “acredita” no potencial que está dentro das pessoas, ajudando a que a vida eterna “germine” dentro delas; a mera função por falta de fé, desgasta-se inutilmente e leva à depressão. Só como função, a caridade perde-se no voluntarismo ou assistencialismo; sem a celebração da fé, a missão perde-se a turismo sem horizonte.

Diz-nos D. François-Xavier Bustillo, em A vocação do padre perante as crises. A fidelidade criativa (Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2022) que uma das “páscoas” que precisamos de desenvolver na pastoral hodierna é da função à missão ou pastoreio. A função pode orientar o homem moderno, e também o padre, para uma vida artificial. Mas a vida não é uma comédia. A nossa fé e a nossa missão não põem no centro as personagens, mas as pessoas concretas. Não podemos ficar a olhar para o dedo que aponta ─ os símbolos ─, mas para a realidade que ele nos chama a contemplar ─ o Mistério. O Senhor deve ser recolocado no centro da nossa vida missionária para redescobrirmos o sentido e o sabor da vida sacerdotal. Ele chamou-nos gratuitamente para uma vida exigente e apaixonante. Não estamos nesta missão porque decidimos fugir de um mundo cruel, nem procurar o conforto de uma vida mais fácil, mas para responder ao apelo de Jesus que nos desloca e recoloca. Exemplo disso é o chamamento de Levi/Mateus, em que Jesus faz sair de uma função para o iniciar numa missão (cf. Mt 9,9-13). A visão decifrada por Daniel (Dn 2,31-35) mostra-nos que da cabeça aos pés não se podem misturar materiais incompatíveis: ferro e barro não combinam (como o funcionalismo e a missão da Igreja). Todo o nosso ser é convocado para a responsabilidade missionária. Ainda que tenhamos ideias nobres na cabeça, o perigo espreita sempre para empreender na descida do corpo uma perda sucessiva de nobreza.

A celebração da Páscoa será luz para cada um de nós, na medida em soubermos/quisermos tirar o mal do meio de nós e nos dermos aos outros com o que somos e temos.

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