Os milagres pressupõem a fé e professam o altruísmo

Gn 8, 6-13. 20-22; Mc 8, 22-26; reflexão apoiada em VV.AA., Comentáros à Bíblia Litúrgica, Gráfica de Coimbra 2, Assafarge 2007, 987-989.

O evangelista Marcos relata-nos a cura de um cego por parte de Jesus, num contexto pastoral em que se pretendia pôr em evidência a cegueira dos fariseus e dos próprios discípulos. Os gestos que Jesus realiza para restaurar a visão daquele homem de Betsaida, longe de parecerem mágicos, são declarados como sendo uma linguagem tátil que era a única que o pobre cego podia compreender.

Estamos diante de uma cura que se processa em dois tempos: num primeiro momento, o cego vê um pouco confusamente e confunde os homens com as árvores, como fazem normalmente as crianças nos primeiros desenhos; num segundo momento a cura é completa. Estamos a contemplar um milagre que se adapta ao curso normal da recuperação natural. Uma coisa é certa, Jesus não quer consequências triunfalistas com as ações que faz, recomendando ao que agora vê de não entrar na localidade. Convite que também nos pode fazer crer que aquela localidade não era boa para a saúde da visão espiritual, prejudicada por ambições “psicadélicas”.

Jesus podia ser um taumaturgo em virtude de extraordinárias faculdades psico-físicas ou em virtude de uma força estritamente sobrenatural. Mas, reparemos que Jesus, na sua ação, não concentrou a atenção nas suas capacidades! Realizou alguns procedimentos práticos e concentra a sua atenção no paciente: “Vês alguma coisa?”. Se Jesus tivesse concentrado a sua atenção nas suas capacidades, ficaria frustrado à primeira. Mas Ele não está centrado em si, mas no que sofre. Então, não desiste dele, impondo-lhe outra vez as mãos até que o cego veja bem. E agora, vês bem? ─ Ter-lhe-á perguntado para saber se estava melhor e não para ver comprovados os seus poderes. Quantas vezes eu desisto à primeira, por estar tão preocupado na validade dos meus talentos?

Conheci uma religiosa que um dia me testemunhou, após uma formação exaustiva para a direção espiritual, não ter recebido qualquer certificado de participação ou título de reconhecimento que ajudasse a demonstrar as suas competências para acompanhar. Ela estava alegre só com aquilo que os formadores lhe tinham dito: “o certificado ou reconhecimento ser-te-á dado quando te aparecerem casos de acompanhamento. Aí, sim. É a prática aturada do acompanhamento para o bem das pessoas, sem desistências, que será o teu melhor certificado”.

Não é só o cego que recupera a vista que precisa de ter cuidado de não frequentar ambientes ou desejos que estraguem a visão; também os que possuem dons são chamados a não entrarem na localidade da presunção de possuir qualidades divinas. Os milagres não se enquadram dentro de uma cristologia triunfalista. Pelo contrário, são testemunhos ou sinais da vinda do Messias e devem ser relatados discretamente por aqueles que deles foram destinatários. A vida cristã sobrevive à beira do “segredo messiânico”; os crentes não têm de medir forças com os descrentes a propósito dos milagres, mas podem dar testemunho do encontro com Jesus que cura e salva. A experiência espiritual cristã (melhor nome para a teologia da vida espiritual) é uma ciência descritiva, em que a fé, que não vem dos milagres, é pressuposto de quem abre o coração à providência da graça de Deus. Embora não possamos provar racionalmente os milagres, podemos acreditar no poder sobrenatural de Deus, descrevendo o que Ele, por A mais B, é capaz de fazer na nossa vida, acima das nossas forças humanas, nas diversas circunstâncias.

A forma de Jesus proceder está prefigurada em Noé, que teve a paciência de esperar sete dias, em quem podemos descobrir que para a pastoral na Igreja podem ser mais fecundos processos de descoberta criativa do que declarações de qualidades patenteadas que não ajudam a criar nada. Tanto a Criação como a Nova Criação aconteceram por etapas. Continua a ser assim hoje, na vida da comunidade da Igreja, como na vida pessoal de cada crente.

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