Só se torna impuro o que for contrafacionado pelo coração do homem

Gn 2, 4b-9. 15-17; Mc 7, 14-23

Uma das coisas que o Senhor Jesus fez rutura foi no tocante à definição do que é puro e impuro. Para os judeus, havia alimentos impuros, e as pessoas que os comessem eram declaradas impuras e afastadas da comunidade. Os judeus não sabiam distinguir impureza física e impureza moral. E impunham a conveniência de se proteger a saúde ou segurança física com uma lei moral rígida, que acabava por os favorecer social e religiosamente.

Há a hipótese de o segundo Evangelho ser de origem jucaico-helénica, fazendo com que a preocupação de Marcos fosse ultrapassar uma mera conceção de pureza ritual e cultual, mostrando-se claramente inclinado a espiritualizá-lo, atribuindo maior importância ao aspeto ético e espiritual do que ao ritual. Mesmo, assim, a este respeito, Jesus vai mais longe: não basta superar, sublimando-o, o antigo conceito de pureza ritual, mas é preciso rejeitá-lo nas suas premissas fundamentais. Precisamente, esta distinção entre uma esfera religiosa, divina, da vida e uma esfera quotidiana, que não pertencia a Deus, é totalmente rejeitada. Ao afirmar que as coisas do mundo nunca são impuras, mas que podem vir a sê-lo unicamente através do coração do homem, a comunidade de Jesus manteve a fé na bondade da criação, contra uma tendência ascética que olhava de revés para a própria criação de Deus.

Com esta lição, Jesus condena todo o automatismo da aplicação da lei, com a busca de zonas privilegiadas de refúgio, que bastaria alcançar para se sentir imediatamente salvo. Não há apriorismos sagrados, ou seja, não basta que uma pessoa, um lugar, uma casa tenham sido consagrados a Deus para se tornarem automaticamente sagrados e intocáveis. A única santificação possível vem a posteriori, quando o homem assume, livre e conscientemente, um comportamento conforme a vontade de Deus. Portanto, não há nada sagrado ou profano, puro ou impuro em si mesmo. A criação é secular: pode ser profana e pode ser sagrada. Só pelo diálogo entre Deus e o homem é que algo se torna sagrado e puro. É o que se torna claro com a revisitação do Génesis.

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Cf. VV.AA., Comentáros à Bíblia Litúrgica, Gráfica de Coimbra 2, Assafarge 2007, 980-981.

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