A bandeira da fé é a memória no tempo, tendo a Cruz por centro
Is 53, 1-10; Jo 19, 28-37 ─ Na Festa das Cinco Chagas do Senhor
No prefácio do livro dos Patronos da JMJ Lisboa 2023, D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, quando fala de Chiara Badano e Carlo Acutis, refere-se à «proteção de dois jovens bem-aventurados que também “partiram”, mesmo quando a doença lhes imobilizou o corpo, mas não o coração. Como Cristo pregado na cruz, que daí mesmo partiu para o Pai e nos salvou a todos com a vida que entregou» (pp. 11-12). Estes, como os outros Patronos da JMJ, são-nos apresentados como companheiros na peregrinação de fé e alegria, pelo Cardeal Kevin Farrel, Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida.
Hoje podemos pensar o mesmo do evangelista São João que, tendo sempre estado ao lado de Jesus, até na sua entrega na Cruz, nos ajuda a fazer viva memória do que viu: as chagas do Senhor antes e depois da Ressurreição. Esta devoção, que teve como grande impulsionador São Bernardo, e que entre os portugueses está viva desde os começos da nossa nacionalidade (como testemunham a literatura religiosa e a onomástica) refere-se ao culto das Cinco Chagas do Senhor, isto é, as feridas que Cristo recebeu na cruz e manifestou aos Apóstolos depois da ressurreição.
Ao contemplar de perto a crucifixão e morte de Jesus na Cruz, são João recapitula o que a Escritura tinha previsto a respeito de Jesus. O discípulo e apóstolo João aprendeu com Maria a guardar no coração todas as peças que prefiguravam este desfecho salvífico, para no-lo testemunhar com o objetivo da nossa fé.
[Para que também]Vós acrediteis: o uso do presente, em grego, significa que se trata de gente que já acredita, mas com dificuldade em aceitar a morte de alguém que era Messias e Filho de Deus, precisando, por isso, de fortalecer/corrigir a fé: Cristo morreu verdadeiramente, mas a sua não é uma morte estéril. O evangelista vê, no facto das pernas não quebradas e na saída de sangue e água, um significado cristológico, eclesiológico e soteriológico preparado ao longo da obra: é necessário receber um Cristo inteiro (uma cristologia sem fraturas), como forma de manter a unidade eclesiológica e, assim, receber os dons soteriológicos. O sangue significa a vida de Jesus, doada para que os homens tenham a vida divina (6,53ss), isto é, o Espírito Santo, anunciado como essa água que sairia do seio de Jesus aquando da sua glorificação (4,13-15; 7,35-39). Numa posterior camada de sentido, o sangue referir-se-á à eucaristia (6,55) e a água ao batismo (3,5), os sacramentos de que vive a Igreja.
Nota do vers. 35 do cap. 19 de João
O Papa Bento XVI, enquanto Joseph Ratzinger, num dos livros da sua trilogia Jesus de Nazaré ─ Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, garante que “todas as Escrituras tinham falado dos acontecimentos desta Paixão e a absurdidade descobre agora o seu profundo significado. No acontecimento aparentemente sem sentido, manifestou-se realmente o verdadeiro sentido do caminho humano; o sentido trouxe a vitória sobre a força da destruição e do mal” (p. 168). Referindo-se ao texto de Isaías que lemos na primeira leitura, Joseph Ratzinger garante-nos que na sua leitura “é possível apreender o assombro do cristianismo primitivo ao constatar como o caminho de Jesus Cristo tinha sido predito passo a passo. E acrescenta que “o profeta fala como evangelista” (p. 170).
Nesta ocasião, peçamos a Jesus a graça de, como Ele ─ ao recusar a bebida anestesiante para atenuar os sofrimentos insuportáveis próprios das crucifixões ─ recusarmos tudo aquilo que, com o motivo de nos livrar de sofrimentos suportáveis, também nos tira a consciência plena do que Ele vai construindo na nossa vida, pela forma como nos convida a suportar o crescimento e a missão. Acabar com o sofrimento implica algum sofrimento; de contrário é sofrimento que gera mais violência. Ele tem sede que tenhamos sede d’Ele; Ele que é fonte de vida eterna.
Em O caminho menor percorrido, Scott Peck, como psiquiatra cristão, atreve-se de lançar um esboço de resposta à pergunta sobre se o sofrimento de Cristo na Cruz foi mesmo o maior sofrimento da história, uma vez que houve muitas outras formas atrozes de se infligir a morte a inocentes. Ele diz que naquela ocasião, Jesus tinha um nível de consciência que mais ninguém tinha: o que de pela Sua entrega tinha a responsabilidade de manter o Céu definitivamente aberto para toda a humanidade que se queira aventurar a aceitar a sua proposta do Reino de Deus. Esta resposta faz-me lembrar a consciência dos pais, educadores, dos apóstolos de hoje que têm a sabedora sobre o que edifica ou não um verdadeiro caminho para a salvação, mesmo sem o poder ou saberem explicar. A sua forme de o dizer mais eloquente é o testemunho. E, por vezes, o que resta do seu testemunho são as chagas ou sofrimentos por terem defendido a verdade com palavras e obras.
Costumamos, guiados pelo bom senso e pelo Espírito de Deus, que acontecimentos como Auschwitz, as guerras, etc. não podem ser esquecidos, precisamente porque servem de selo para o que não se deve repetir, a não ser o modo não violento e fraterno com que podemos superar estas crises humanitárias.
Nós vos adoramos e bendizemos, ó Jesus…