A música define-se como a arte de imprimir sentimentos e impressões por meio de sons. E como em qualquer gramática da arte comunicativa, precisa de um emissor, de um recetor, de códigos e de meios ou instrumentos para se veicular a mensagem através desta arte do movimento. Santa Cecília é padroeira dos músicos e cantores, mas não por ter sido instrumentista. Então, que música ela soube interpretar?
Podemos dizer sem rodeios que Cecília interpretou bem a música do coração iluminado pelo Evangelho, através de um canto a três vozes, como o é em qualquer pessoa consagrada a Deus a partir dos três conselhos evangélicos da pobreza, castidade e obediência. Estar afinados nas cordas vocais e ter os nossos sentimentos em harmonia com os de Cristo não é bem a mesma coisa. Pode haver alguém que cante bem e estar longe de Cristo e alguém que cante menos bem e gostar do que Cristo gosta. Se pudermos juntar estas duas qualidades, tanto melhor! Seja como for, é a alegria com que se canta que ajuda a colocar os nossos corações à disposição de Jesus Cristo.
O texto do evangelho de hoje, que proclamámos há dois domingos atrás com mais versículos (Lc 21, 5-19), transporta o convite de Jesus sobre o cuidado a termos com os nossos corações, como o lugar onde guardar a convicção de que não devemos preparar a nossa defesa, pois Deus nos dará língua e sabedoria a que nenhum dos nossos adversários poderá resistir ou contradizer. Ora, a música de que se trata é a interpretação da sabedoria de Deus através do instrumento que é o nosso testemunho em favor do seu santo nome. Portanto, Santa Cecília tocava a música da sabedoria de Deus, através dos conselhos evangélicos, tocados como três vozes a partir do “instrumento” chamado testemunho.
Por isso é que Santo Agostinho, no seu comentário aos Salmos que podemos ler no Ofício, diz que este cântico novo só se pode cantar como homens novos, com o testamento novo. E diz ainda que aquele “júbilo” que cantamos com este cântico novo é uma melodia que traduz a incapacidade de exprimir por palavras o que sente o coração. Este cântico novo só se pode consagrar a Deus que é inefável. Uma vez que não temos palavras para exprimir diante do Deus inefável, para não ficarmos calados por Lhe devermos o devido louvor, então somos chamados a cantar com júbilo. Ou seja: não se trata somente de cantar isto ou aquilo, cantar afinado ou menos afinado, com um timbre mais ou menos bem sonante, mas pela forma de autenticidade como cantamos os louvores a Deus.
A força do testemunho de Cecília soava em altura e intensidade, para dentro e para fora da sua família. Martirizada por volta do ano 230, durante o império de Alexandre Severo e o Pontificado de Urbano I, Cecília optou, no momento do seu matrimónio com Valeriano, por guardar virgindade perpétua para Deus. O seu marido acabou por aceitar, uma vez que foi catequizado e batizado por Urbano I. O mesmo aconteceu com seu irmão. Aqui se prova a força do amor de Deus contido no testemunho desta Santa. Acabaram todos presos e decapitados. Prova ainda maior da força do seu testemunho foi o facto de o carrasco de Cecília temer executá-la em público, por saber da sua popularidade entre os cristãos, tentando martirizá-la em privado por asfixia, sem êxito, procurando outras formas de a matar. Ainda em agonia, ela conseguiu dar todos os seus bens aos pobres.
Em Santa Cecília, a comunidade dos crentes é chamada a confiar que o tempo e as pedras do templo passam, mas a vida nova de Cristo ressuscitado não passa. Não nos podemos deixar enganar. Diante das catástrofes, somos convidados a permanecermos de pé, sabendo que a força vem do alto. Jesus é o verdadeiro libertador, o único Mestre a quem devemos seguir e servir.
A Lenda Áurea ─ coletânea medieval de biografias hagiográficas ─ narra que foi o próprio Papa Urbano I, com a ajuda de alguns diáconos, que sepultou o corpo desta jovem mártir nas Catacumbas de São Calisto, em um lugar de honra, porto da cripta dos Papas. No ano 821, o Papa Pascual I, seu grande devoto desta que era invocada como “a virgem Cecília que trazia sempre em seu coração o Evangelho de Cristo“, transladou as suas relíquias para a cripta da Basílica de Santa Cecília, no bairro romano de Trastevere, edificada em sua memória.
Há uma conexão explícita entre Santa Cecília e a Música, documentada desde a Idade Média tardia. O motivo deve-se a uma errada interpretação, segundo alguns, de um trecho da Passio; e, segundo outros, da antífona de entrada da Missa por ocasião da sua festa, onde se lê: “… enquanto os órgãos tocavam, ela canta, em seu coração, somente ao Senhor”. A partir da segunda metade do século XV, em diversos lugares da Europa, a iconografia da Santa começa a proliferar-se e a enriquecer-se de elementos musicais. O êxtase de Santa Cecília, obra-prima de Rafael para a igreja de São João no Monte, em Bolonha, – que a representa com uma mão em um órgão móvel e, em seus pés, vários instrumentos musicais – confirma a íntima ligação da mártir romana com a música. Ela já era invocada e celebrada como Padroeira dos músicos e cantores. Foi dedicada a ela a Academia de Música, fundada em Roma, em 1584.
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