Confrangedora pobreza diante da confrangedora riqueza, assistência junto das consequências e caridade junto das causas

Ef 2, 1-10; Lc 12, 13-21; Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza

Estar cansados de ver tantos contrastes entre a extrema pobreza e a extrema riqueza” é a primeira razão apontada pelo Movimento Laudato Si’ para podermos para fazer crescer em nós uma maior preocupação com a casa comum e os pobres, ou seja, para sermos animadores Laudato Si’.

Conheci uma universidade em que os professores de um certo curso partilhavam parte do seu ordenado mensal com os seus alunos, para que estes pudessem aguentar as propinas. Cortavam ao seu orçamento mensal algo de material para garantirem o desenvolvimento humano e intelectual, ou seja, um melhor futuro para os seus alunos.

Ao analisar os dados da Pordata, o Expresso descobre que a maior percentagem dos que vivem no limiar da pobreza em Portugal são os idosos e as pessoas mais inválidas. Portugal tem pela frente a meta de retirar 600 mil pessoas da situação de pobreza até 2030. Mas a inflação, que chegou quando ainda muitos tentavam resolver o impacto da pandemia, veio agravar a situação.

Depois de escutar o Evangelho de hoje, pergunto-me: serão só as consequências da pandemia e da guerra a provocar a extrema pobreza? Ou também as causas de ambas? Enquanto nos fixarmos unicamente nas consequências das consequências, não haverá solução à vista. Jesus prefere dar atenção à causa das causas, para promover um estilo de vida mais condizente com a nossa condição de filiação divina e de fraternidade universal.

Depois de termos escutado a parábola do juiz iníquo (Lc 18, 1-8), que acabou por satisfazer o pedido insistente da viúva para se livrar dela, a Liturgia coloca-nos diante de um episódio paradoxal (Lc 12, 13-21), em que Jesus responde de forma desconcertante a um homem que no meio da multidão Lhe pede justiça sobre a herança que o irmão não quer repartir com ele. O contexto é outro e incomparável ao da situação daquela mulher viúva que há muitos anos era perseguida por um adversário; não se diz nada sobre os seus bens, mas basta sabermos que se sente indefesa e invalidada pela solidão que a torna vulnerável. Aquele homem, do meio da multidão tinha um irmão, ainda que este não quisesse repartir com ele a herança paterna. Aquela mulher sabe ter-se em boa conta com Deus, aquele homem do meio da multidão não valoriza o laço pelo qual pode ligar-se melhor (assim como ao irmão) a Deus.

Jesus apresenta-Se não como árbitro de bens materiais, mas árbitro do que pode ou não ajudar a jogar bem a filiação e a fraternidade que determinam o acesso à plenitude da vida. Ao contar a parábola do homem rico e insensato, está a ensinar aquele homem do meio da multidão, para que ele vá, por sua vez, evangelizar o irmão, assim como na parábola do juiz iníquo a viúva acaba por ser sugerida como evangelizadora contra a indiferença. Portanto, a resposta de Jesus é uma parábola que ajuda a repor a justiça divina no tocante à forma como se gerem os bens terrenos e sobre o seu lugar hierárquico no que respeita aos relacionamentos humanos.

A contradição não está nas palavras de Jesus, mas na insensatez do homem rico: é o corpo que precisa de bens materiais, mas é de pouca duração; a alma, por sua vez, tem sede de eternidade, e só se sacia com os valores que possam garantir a vida eterna. O “celeiro” da alma não se enche com bens materiais, mas com valores espirituais praticados com boas obras que ligam diretamente a Deus e ao próximo.

A erradicação da pobreza e da fome é um dos oito objetivos de desenvolvimento do milénio, definidos no ano de 2000 por 193 países membros das Nações Unidas e por várias organizações internacionais. Em Portugal, consciente das metas assumidas perante a União Europeia no sentido de tirar 660 mil pessoas da pobreza em Portugal até 2030, o Governo aprovou em dezembro do ano passado a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Contudo, até então, apesar de algumas das medidas propostas terem já avançado pontualmente, não foi definida qualquer comissão de acompanhamento nem se conhece qualquer indicador de monitorização da Estratégia.

Pena é que a política continua a olhar meramente para a forma como ligar com as consequências sem se ter a coragem de assumir as causas das causas. Para que um ser humano tenha sucesso na vida, não basta que pratique a ética no trabalho; é preciso que ele mesmo seja ético, quer-se dizer: que seja boa pessoa! Não basta fazer bem para não ser penalizado; é preciso ser conforme o Bem supremo que vela sempre pelo bem comum.

Escrevo a todas as Igrejas e asseguro a todas elas que estou disposto a morrer de bom grado por Deus, se vós não o impedirdes. Peço‑vos que não manifesteis por mim uma benevolência inoportuna. Deixai‑me ser pasto das feras, pelas quais poderei chegar à posse de Deus. Sou trigo de Deus e devo ser moído pelos dentes das feras, para me transformar em pão limpo de Cristo. Rezai por mim a Cristo, para que, por meio desses instrumentos, eu seja sacrifício para Deus.

SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, Aos Romanos

A afirmação deste Padre da Igreja do século I, discípulo do João e sucessor de Pedro, não deixa dúvidas do que o seduz: nada de coisas terrenas, só as realidades do Reino eterno, a caridade incorruptível. A ânsia que o atormenta é confrontar-se com aquilo que poderia impedir de ser verdadeiramente um homem, os alimentos corruptíveis, e ser seu partidário significa não darmos atenção ao príncipe deste mundo. É comovente como ele caminhava para o martírio! Estava a fazer teologia!

Hoje rezo para que na sociedade, aqueles que têm o poder de ser árbitros dos bens terrenos não ostracizem nem deixem de escutar aqueles que têm por missão arbitrar os valores eternos, a partir de uma proposta social inspirada no Evangelho. Peço também para que estes não percam a coragem de estar perto dos mais pobres e vulneráveis, tendo-os como centro da mensagem cristã, uma vez que a sua pobreza se assemelha àquela com que Jesus Cristo nos enriqueceu de vida eterna. Peço para que a Igreja tenha a coragem de dar testemunho de pobreza junto dos mais pobres, através de uma opção preferencial pelos mesmos.

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